A Rua

Quando a carroça de colônia apontava na parte alta da rua das Flores todos os moradores já sabiam que era o Fritz trazendo batata inglesa em sacos para vender, onde seus clientes cativos eram os armazéns. Em pleno vigor dos seus trinta e poucos anos o condutor transpirava alegria e disposição para dar manivela no varão do freio para brecar a carroça, através das sapatas revestidos com mantas de pneus. Parado, golpeava um saco de batata e largava na frente do armazém, recebia os “pilas” e novamente batia com o cabo do relho na lateral do veículo dizendo à dupla de cavalos que podiam seguir em frente.

Como se combinado, algumas horas depois, outro personagem não menos conhecido entrava na mesma rua, mas agora vindo das bandas do Cerrito, portanto, passando pela cooperativa dos ferroviários, era o Darci, um jovem negro com sérios problemas psíquicos que introjetava a figura de um motorista de automóvel e, nesse delírio da sua realidade fantasiosa berrava a pleno pulmões, na vontade involuntária de exorcizar os fantasmas que faziam de seu corpo a sua eterna morada.

Enquanto os acontecimentos na rua se alternavam entre o silencio e a agitação, no minuto seguinte, a gurizada indócil corria de um lado para outro em plena guerra tribal e, com seus estilingues e armas de madeira, atiravam bolotas de cinamomo uns nos outros num verdadeiro salve-se quem puder.

De súbito, a vizinhança era surpreendida pelo barulho de uma carroça, cujo cavalo havia discordado de apanhar do dono e se punha em plena disparada. Mais atrás, a uns cento e cinquenta metros, corria condutor abandonado que agora só conduzia o seu próprio desespero de ter perdido a carroça e o cavalo.

Um trovão, o relâmpago anunciava a chuva que logo iria inundar a rua e encher as valetas; era a hora da turma abandonar os bodoques e se preparar para tomar banho. O pointer era um cinamomo numa curva da rua onde a valeta mudava de direção e era mais profunda, de onde podia-se dar belos saltos na água em plena gritaria.

À noitinha, bêbados se cruzavam com as pernas abertas, cuja abertura angular melhorava o equilíbrio. Os mais afoitos, quando impossibilitados de assumir o seu próprio leme recebiam serviço privilegiado de entrega à domicílio por parte de alguns donos de bares e, o translado até suas residências era feito com carinho de mão, uma condução pós diligências e muito em uso para toda obra, contribuindo, inclusive, na mobilidade da rua.

Fez-se noite. A luz tênue dos postes concorria com a da lua. A preocupação inconsciente dos moradores sugeria preparar os lampiões e candeeiros, pois as vinte e duas horas o gerador de corrente continua que alimentava a rua e parte da vila seria desligado.

Do dia seguinte ninguém se ariscava a dar palpite, afinal, começava a entrar a temporada do jogo de tampinha e provavelmente a tarefa fosse recolher tampinhas de garrafas no lixo. Mas aí eram outros quinhentos, pois primeiro teríamos que dar o formato adequado nos fragmentos de telhas para poder virar o montes de tampinhas. Ou, quem sabe, partir para a fabricação dos poderosos carrinhos feitos com laterais de tábuas de caixas de sabão, feixes de molas de arco de barril, rodas de cabo de vassouras e cobertura de lata de óleo de soja. Ou, seria hora de se fazer pernas de pau?