Relações Cordiais**

Giovanni Salera Júnior;

Adriana Malvasio;

Odair Giraldin.

Pós-graduação em Ciências do Ambiente,

Fundação Universidade Federal do Tocantins (UFT)

A maioria dos brasileiros acredita que viemos do Jardim do Éden. Mas entre os índios Karajá a história é outra. Segundo suas crenças, eles deixaram as profundezas do Araguaia para construir aldeias e ocupar suas margens, mantendo desde então forte relação com o rio, sua fauna e sua flora. Os Karajá pertencem ao tronco lingüístico macro-jê e se dividem em três subgrupos: Javaé, Xambioá e Karajá propriamente dito. Somando-se os cerca de 2.500 indivíduos deste último grupo a 1.040 Javaé e a 230 Xambioá, aproximadamente 3.770 Karajá se distribuem em torno da bacia do rio Araguaia, que abrange os estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Pará (figura 1).

As aldeias dos subgrupos Karajá e Xambioá estão às margens do Araguaia; as dos Javaé ficam às margens do rio Javaés, um braço menor do Araguaia que contorna a parte leste da ilha do Bananal, no Tocantins. Apesar da distância geográfica entre as aldeias dos três subgrupos, eles são considerados um só povo, pois têm os mesmos valores e costumes, e a mesma língua.

Em vários grupos indígenas brasileiros há divisão de tarefas entre homens e mulheres. Em geral, as mulheres cuidam da casa, dos filhos e da confecção de artesanato e utensílios domésticos; os homens constroem casas, fazem canoas, cuidam da roça, caçam e pescam. Entre os Karajá, há também uma distinção entre a fala feminina e a masculina. Essa diferença é feita por meio de fonemas e expressões específicas para cada gênero e expressa a marcante divisão entre homens e mulheres. A palavra jabuti, por exemplo, tem uma forma para mulheres, kòtubano, e outra para homens, òtubano. Já a palavra jiré, ariranha, tem a mesma forma para os dois gêneros. Apesar dessas diferenças, todos se entendem.

Outro aspecto marcante da cultura Karajá está na organização e disposição das casas nas aldeias. Enquanto as aldeias de muitos grupos indígenas que vivem no cerrado, na mata atlântica e na floresta amazônica são circulares, as aldeias dos Karajá são compostas de duas ou três fileiras de casas sempre paralelas às margens do rio.

A pesca é a principal atividade econômica e de subsistência do grupo. Mas, além de peixes, os Karajá capturam também outros animais aquáticos, como a tartaruga-da-amazônia (Podocnemis expansa) e o tracajá (Podocnemis unifilis). Esses quelônios têm enorme importância social e econômica na Amazônia, pois sua carne, vísceras, gordura e ovos são consumidos por diversas comunidades de pescadores, ribeirinhos e grupos indígenas.

Desde 1998 um grupo de pesquisadores da UFT estuda a biologia reprodutiva, a dieta e a estrutura populacional da tartaruga-da-amazônia e do tracajá no rio Javaés, com o apoio do Ibama. A coleta de dados foi feita no período reprodutivo das espécies, que coincide com a estação seca, e no período não-reprodutivo (estação chuvosa). Em 2003 e 2004, o grupo começou a estudar a cultura dos Karajá, com o objetivo de entender a relação desses índios com o ciclo das águas da bacia do Araguaia e o simbolismo relacionado com os quelônios. Foram feitas quatro visitas às aldeias localizadas na ilha do Bananal, totalizando 20 dias de convivência.

O PAPEL CENTRAL DO ARAGUAIA

Segundo sua tradição, os Karajá viviam no fundo do rio Araguaia, por eles chamado de Berohoky (pronuncia-se berôrokã), que significa Grande Rio. Um dia eles resolveram deixar as águas e subir ao nível terrestre, onde passaram a viver. Alguns não quiseram vir, porque aqui encontrariam a morte. Os que continuaram sob a água se transformaram em seres mágicos, os Aruanãs e Worysy (pronuncia-se uorãsã), tornando-se protetores do rio, dos animais e das plantas. Desde sua ascensão do fundo do Araguaia, os Karajá mantêm uma constante relação com esses seres míticos das profundezas por meio de seus principais rituais: a Festa dos Aruanãs e o Hetohoky (pronuncia-se retorokã).

A Festa dos Aruanãs reúne atividades místicas e alimentares, com danças, cânticos, brincadeiras e refeições. Ao som de maracás, os homens dançam em duplas, vestidos com roupa feita à base de palhas e penas tingidas com jenipapo e urucum (figura 2). As mulheres também participam. Elas dançam adornadas com colares e enfeites de algodão nos braços, joelhos e tornozelos, e se pintam com jenipapo e urucum (figura 3). O centro da festa é a casa dos Aruanãs. Longe das casas dos Karajá e perto da floresta, ela só pode ser freqüentada por homens. As mulheres que se aproximarem dela podem até mesmo ser expulsas da aldeia.

No Hetohoky, ritual de iniciação masculina, os meninos são levados à casa dos Aruanãs para se iniciar nos segredos desses seres mágicos e se transformar em dançarinos e participantes da festa. O ritual é conduzido pelo pajé, o líder espiritual dos Karajá, que convida os seres mágicos do fundo do Araguaia para participar da festa e das danças.

Para entender a Festa dos Aruanãs e o Hetohoky, é preciso conhecer a noção de tempo e o calendário dos Karajá. Com poucas exceções, nosso calendário anual é bastante rígido. Temos um ano de 365 dias (à exceção dos anos bissextos), e nossos feriados e dias santos são bem definidos. Cabe lembrar que o nosso ano se baseia na volta completa que a Terra dá em torno do Sol. Já o calendário das festas e rituais dos Karajá não tem relação com o Sol, mas com o regime de vazão da bacia do Araguaia. Segundo esses índios, o ano na região do Araguaia se divide nos períodos de seca e chuva. A seca vai de junho a novembro, com ápice em agosto e setembro; o período chuvoso se estende de dezembro a maio, com ápice em janeiro e fevereiro, época de maior cheia dos rios Araguaia e Javaés.

Assim, o início e o fim das festas rituais podem variar entre as aldeias, não havendo um calendário rígido. A variação dependerá de fatores como disponibilidade de alimento, ausência de conflito entre as famílias e ausência de luto. Apesar disso, é o ciclo das águas do Araguaia que define as festas no calendário Karajá. O ano ritual começa geralmente em junho e julho (início da estação seca), e o ápice dos cerimoniais coincide com o período de maior cheia (janeiro e fevereiro).

Há íntima relação entre o regime das águas e a intensidade das festas. Na seca, os rituais são mais discretos, com poucas danças, cânticos e movimentação na aldeia. Mas na época das chuvas, quando o volume de água nos rios aumenta, as festas se animam, envolvendo grande número de pessoas, muitas vindas de outras aldeias. Há muitos cânticos, danças e refeições especiais, e o pajé convida os seres míticos do fundo do Araguaia e do Javaés para as comemorações.

TARTARUGAS E TRACAJÁS

Assim como as festas dos Karajá têm relação com a seqüência de cheia e seca do Araguaia, o ciclo de vida da tartaruga-da-amazônia e do tracajá também é marcado pelo regime das águas na região. Há sincronia entre a vazante dos rios e o comportamento reprodutivo dessas espécies.

Durante a cheia, de dezembro a maio, esses animais ocupam pontos isolados dos rios (lagos marginais, pequenos igarapés e áreas alagadas). No início da seca (junho e julho), machos e fêmeas se juntam em grandes grupos e migram em direção às praias para a desova – a chamada ‘arribação’. Os animais se reúnem nas águas rasas próximas às praias e passam a observar atentamente o ambiente, buscando locais para pôr seus ovos. Nessa etapa há o acasalamento.

As fêmeas de tracajá desovam do final de julho ao início de setembro. Já as tartarugas começam a pôr ovos mais tarde, no final de agosto, podendo fazê-lo até o início de outubro. A variação do período de desova depende do nível de água dos rios da região. Em geral, a postura começa quando o nível da água alcança seu ponto mais baixo. Um tracajá põe de 5 a 30 ovos (média de 15); já uma tartaruga põe de 35 a 165 ovos (média de 100). Após a desova, as fêmeas voltam para o rio e aguardam com os machos o início das chuvas, quando a água do rio torna a subir e os animais podem retornar aos lagos (figura 4).

Os ovos eclodem nos meses de outubro e novembro, e os filhotes, logo que nascem, correm em direção ao rio, desaparecendo nas águas escuras (figura 5). Os locais de dispersão dos filhotes ainda não foram devidamente estudados. Não se sabe onde os animais ficam, o que comem ou quanto crescem. Sabe-se apenas que 10 anos depois, já adultos, começam a retornar, na seca, para as praias próximas do local onde nasceram.

QUELÔNIOS: FONTE ALIMENTAR E ÍCONE CULTURAL

A relação dos Karajá com as tartarugas e tracajás não se limita aos aspectos ligados ao ciclo das águas do Araguaia. Há também um vínculo simbólico entre os índios e esses animais. Na Festa dos Aruanãs e no Hetohoky, Aruanãs e Worysy imitam vários bichos. A imitação é considerada uma diversão para esses seres mágicos durante as festas e mesmo em suas aldeias subaquáticas.

Os Aruanãs e Worysy vêm às aldeias para comer as iguarias dos índios e conhecer lugares diferentes. Por isso na seca os índios pescam coletivamente – o objetivo é preparar comida para servir aos Aruanãs e Worysy. Os pratos que eles mais cobiçam são preparados à base de tartarugas e tracajás, como o bororò, o bereti e o halubu. Feito com carne de tartaruga ou tracajá, o bereti é preparado na parte ventral do animal (plastrão). Já o bororò, um ensopado feito com a carne, gordura e vísceras de tartaruga, é feito na parte dorsal do casco do animal (carapaça). O sangue cozido e condimentado de tartaruga ou tracajá é o halubu. Esses pratos são acompanhados de farinha de mandioca, batata-doce e mandioca.

Os índios conhecem muito bem esses animais. Chegam até a classificá-los por gênero e idade, como se faz com seres humanos: ijadoma (moça), senadu (velha), weryrybò (rapaz) ou matukari (velho). Essa identificação é importante, pois os pratos bereti e bororò, por exemplo, devem ser preparados com uma senadu; já o halubu pode ser preparado com o sangue de tartaruga ou tracajá de qualquer gênero ou idade.

Embora os pratos feitos à base de quelônios sejam os mais apreciados entre os Karajá, há restrições ao seu consumo. Durante a gestação e o período de menstruação as mulheres não devem ingerir sua carne, vísceras, gordura, sangue e ovos. A mesma proibição se estende ao pai de um recém-nascido. O consumo desses alimentos não é recomendável também antes e após as relações sexuais. Entre os Karajá, o nascimento de gêmeos está associado à quebra do tabu alimentar pela mãe, que teria consumido ovos de quelônios durante a gestação. Os tabus alimentares, associados à pesca de subsistência, que se restringe à estação seca, evitam a exploração desmedida dos quelônios por esse grupo indígena, tornando harmoniosa a relação entre eles.

Durante o ritual do Hetohoky, várias brincadeiras são feitas com o objetivo de integrar a comunidade e transmitir, principalmente às crianças e aos jovens, a importância de certos valores para o grupo. A alesi“k”òtu (brincadeira do tracajá), sempre realizada nas festividades, revela o apreço dos Karajá pelas tartarugas e tracajás. A relação entre os índios e esses animais se reflete também nas pinturas corporais, feitas com jenipapo. Na Festa dos Aruanãs, as mulheres pintam o corpo com motivos copiados dos escudos do casco das tartarugas e tracajás (figuras 6 e 7).

Os projetos de conservação de quelônios desenvolvidos pelo Ibama envolvem a população indígena local, já que os valores culturais desses povos podem se estender às demais comunidades não indígenas que vivem na bacia do Araguaia. Esses grupos, vale lembrar, são os principais responsáveis por impactos negativos no meio ambiente e pela redução das populações de quelônios em vários locais. A proteção desses animais é importante não só para a conservação da biodiversidade, mas também para a manutenção de uma importante fonte alimentar e de um elemento cultural extremamente valioso.

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**Como citar esse texto: SALERA JÚNIOR, Giovanni; MALVASIO, Adriana & GIRALDIN, Odair. Relações cordiais. Ciência Hoje, Higienópolis - RJ, v. 39, n. 226, p. 61-63, 2006. Disponível em: http://www.recantodasletras.com.br/e-livros/1737228

Publicado no Site Berohokã (O Grande Rio Araguaia), em 22/12/2008. Disponível em: http://www.berohoka.com.br/materia.php?mat_id=249

Giovanni Salera Júnior é Mestre em Ciências do Ambiente e Especialista em Direito Ambiental. E-mail: salerajunior@yahoo.com.br

Adriana Malvasio é Doutora em Zoologia. E-mail: malvasio@uft.edu.br

Odair Giraldin é Doutor em Antropologia. E-mail: giraldin@uft.edu.br

Giovanni Salera Júnior, Adriana Malvasio e Odair Giraldin
Enviado por Giovanni Salera Júnior em 28/10/2006
Reeditado em 22/12/2015
Código do texto: T275873
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