A DEMOCRACIA EM DECADÊNCIA NO SOTAQUE DE LEONARDO BOFF: O MUNDO NÃO ESTÁ UMA MARAVILHA

*Sineimar Reis

“A democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo.” Abraham Lincoln

A democracia é invocada constantemente no discurso político: todos querem mais democracia. Os políticos adoram qualificar suas ações como democráticas ou justificam medidas autoritárias como necessárias para defendê-la de algum inimigo. A palavra democracia tem origem no grego demokratía que é composta por demos (que significa povo) e kratos (que significa poder). Neste sistema político, o poder é exercido pelo povo através do sufrágio universal.

É um regime de governo em que todas as importantes decisões políticas estão com o povo, que elegem seus representantes por meio do voto. É um regime de governo que pode existir no sistema presidencialista, onde o presidente é o maior representante do povo, ou no sistema parlamentarista, onde existe o presidente eleito pelo povo e o primeiro ministro que toma as principais decisões políticas. Democracia é um regime de governo que pode existir também, no sistema republicano, ou no sistema monárquico, onde há a indicação do primeiro ministro que realmente governa. A democracia tem princípios que protegem a liberdade humana e baseia-se no governo da maioria, associado aos direitos individuais e das minorias. Uma das principais funções da democracia é a proteção dos direitos humanos fundamentais, como as liberdades de expressão, de religião, a proteção legal, e as oportunidades de participação na vida política, econômica, e cultural da sociedade. Os cidadãos tem os direitos expressos, e os deveres de participar no sistema político que vai proteger seus direitos e sua liberdade.

O pressuposto básico de toda democracia é: o que interessa a todos deve poder ser decidido por todos, seja direta, seja indiretamente, por representantes. Como se depreende, democracia não convive com a exclusão e a desigualdade. Diversas variantes de democracias existem no mundo, mas há duas formas básicas, sendo que ambas dizem respeito a como o corpo inteiro de todos os cidadãos elegíveis executam a sua vontade. Uma das formas de democracia é a democracia direta, em que todos os cidadãos elegíveis têm participação direta e ativa na tomada de decisões do governo. Na maioria das democracias modernas, todo o corpo de cidadãos elegíveis permanece com o poder soberano, mas o poder político é exercido indiretamente por meio de representantes eleitos, o que é chamado de democracia representativa. O conceito de democracia representativa surgiu em grande parte a partir de ideias e instituições que se desenvolveram durante períodos históricos como a Idade Média europeia, a Reforma Protestante, o Iluminismo e as revoluções Americana e Francesa. A democracia tem tomado diferentes formas de governo, tanto na teoria quanto na prática. Algumas variedades de democracia proporcionam uma melhor representação e maior liberdade para seus cidadãos do que outras. No entanto, se qualquer democracia não está estruturada de forma a proibir o governo de excluir as pessoas do processo legislativo, ou qualquer agência do governo de alterar a separação de poderes em seu próprio favor, em seguida, um ramo do sistema político pode acumular muito poder e destruir o ambiente democrático. De acordo com pesquisas, a democracia vive seu momento mais crítico desde a Guerra Fria, Em países com instituições fracas - Legislativo, Judiciário, Ministério Público -, ela é um risco em si. Governos altamente corruptos manipulam o sistema em favor de interesses próprios, como no Congo. E não está funcionando em muitos lugares, como no Iraque. A população acaba buscando alternativas. Isso é muito comum quando as pessoas se veem colocadas em perigo pela democracia. No Afeganistão, vivia-se sob um regime autoritário, mas se seu vilarejo é bombardeado, oficiais corruptos roubam sua casa, sua mulher é estuprada, você vai preferir a volta do Taleban. Acho que a Rússia tentou a democracia após o fim da Guerra Fria, mas não funcionou - a máfia russa tomou conta e vieram novos conflitos. Por isso, o país voltou atrás, adotando um estilo mais autoritário. A liberdade foi cerceada, não há acesso à informação. No Brasil, você tem muito mais meios de fazer críticas a Lula do que os russos ao (primeiro-ministro Vladimir) Putin. Então, nesse sentido, não é uma democracia. Já o Irã é um caso interessante, porque há um sistema. Nas eleições de junho, havia dois partidos com visões distintas muito claras. Mas, quando o povo decidiu ir às ruas protestar (contra supostas fraudes), o aparato do Estado foi para cima deles. Então, a democracia iraniana é sobreposta pelo guarda-chuva dos clérigos. No entanto, toda sociedade é assim. Na Grã-Bretanha, o Partido Nacional, de ultradireita, está prestes a desaparecer porque as pessoas o acusam de ser racista e de criar tensões entre etnias e regiões. Cada país tem seu guarda-chuva ideológico, hoje nós temos a China. As pessoas se perguntam: em tempos de crise econômica e de aquecimento global, como os EUA podem ainda dar as cartas? Os Emirados Árabes, autocráticos, são outro exemplo. Trabalhadores da Índia, Bangladesh e Filipinas emigraram para Dubai, porque suas democracias não foram capazes de alimentá-los. Só há dois ou três exemplos bem sucedidos: Coreia do Sul e Taiwan. Talvez, Chile. Mas, em nenhum desses casos, a mudança ocorreu do dia para a noite. No Chile, Augusto Pinochet cometia atrocidades, mas, ao mesmo tempo, implementou a reforma econômica, que mais tarde facilitaria o ambiente para a democracia chilena. O último estudo global, realizado pela Pesquisa Mundial de Valores, sobre a solidez da democracia em 2015 apresenta dados extremamente preocupantes. Entretanto, é amplamente ignorado, exceto pelo jornal norte-americano The New York Times, que publicou um informe especial, segundo a autorizada instituição, nos Estados Unidos o número de cidadãos que aprovam a lei que legaliza a posse de armas passou de uma em cada grupo de 15 pessoas em 1995 para uma em cada seis em 2015, No fim da Guerra Fria, a América Latina tinha instituições desenvolvidas e uma política dividida entre esquerda e direita. Apenas isso já coloca o Brasil e seus vizinhos muito à frente dos países do Oriente Médio, África e parte da Ásia, onde as eleições têm bases étnicas, tribais ou religiosas.

Verdadeiro é o juízo de Pedro Demo, brilhante sociólogo da Universidade de Brasília, em sua “Introdução à Sociologia”: “Nossa democracia é encenação nacional de hipocrisia refinada, repleta de leis ‘bonitas’, mas feitas sempre, em última instância, pela elite dominante para que a ela sirva do começo até o fim. Se ligássemos democracia com justiça social, nossa democracia seria sua própria negação”. Não obstante, não desistimos de querer gestar uma democracia enriquecida, especialmente a partir dos movimentos sociais de base, proclamando o ideal de uma sociedade na qual todos possam caber, a natureza incluída. Será uma democracia sem fim, conforme Boaventura de Souza Santos, cotidiana, vivida em todos os relacionamentos: na família, na escola, na comunidade, nos movimentos sociais, nos sindicatos, nos partidos e, evidentemente, na organização do Estado democrático de direito. Portanto, pretende-se uma democracia mais que delegatícia, que não comece e termine no voto, mas uma democracia como modo de relação social inclusiva, como valor universal (vide Norberto Bobbio) e que incorpore os direitos da natureza e da Mãe Terra – uma democracia ecológico-social. Esse último aspecto nos obriga a superar um limite interno do discurso corrente da democracia: o fato de ser ainda antropocêntrica e sociocêntrica, vale dizer, centrada apenas nos seres humanos e na sociedade. O antropocentrismo e o sociocentrismo representam um reducionismo. Pois o ser humano não é o centro exclusivo, nem mesmo a sociedade, como se todos os demais seres não entrassem em nossa existência, não tivessem valor em si mesmos e somente ganhassem sentido e valor enquanto ordenados ao ser humano e à sociedade.

Ser humano e sociedade constituem um elo, entre outros, da corrente da vida. Sem as relações com a biosfera, com o meio ambiente e com as precondições físico-químicas, não existe nem subsiste. Na era da nascente geossociedade e da conscientização ecológica e planetária, a natureza, o ser humano e a sociedade estão indissoluvelmente relacionados: possuem um mesmo destino comum, como bem dizem a encíclica do papa Francisco “Cuidando da Casa Comum” e a “Carta da Terra”. A perspectiva ecológico-social tem, ademais, o condão de inserir a democracia na lógica geral das coisas. Sabemos hoje pelas ciências da terra e da vida que a lei básica que subjaz à cosmogênese e a todos os ecossistemas é a cooperação de todos com todos, a sinergia, a simbiose e a inter-relação entre todos, e não a vitória do mais forte. A democracia é o valor e o regime de convivência que melhor se adéqua à natureza humana cooperativa e societária. Realizar a democracia significa avançar mais e mais no reino do especificamente humano. Significa religar-se também mais profundamente com a Terra e com o Todo. É o ideal buscado. No entanto, o que estamos vendo nos dias atuais é o contrário: um ataque à democracia em níveis mundial e nacional. O avanço do neoliberalismo ultrarradical, que concentra poder em pouquíssimos grupos, radicaliza o consumismo individualista e alinha os países à lógica do império norte-americano, solapa as bases da democracia.

Sineimar Reis e Lonardo Boff
Enviado por Sineimar Reis em 09/10/2017
Reeditado em 09/10/2017
Código do texto: T6137952
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