No tilintar do triângulo, o sabor da infância: O vendedor de cascalho da Manaus Antiga

Vindo de longe, ainda no começo da rua, já é possível lhe escutar. Caminhando sob o asfalto ardente da cidade, ele é capaz de causar, com o tilintar de seu triângulo, a correria das crianças, que vão em direção aos seus responsáveis para pedir o simbólico valor de 2 reais para comprar um doce simples que já era consumido por seus pais, avós e bisavós há muito tempo. É o vendedor de cascalho, cascalheiro se preferirem, personagem popular que marcou inúmeras gerações. Pretende-se, com esse texto, traçar um panorama das origens desse vendedor em Manaus, bem como analisar, através de relatos e fontes escritas, seu cotidiano e relação com a população da cidade.

Não é difícil identificar um vendedor de cascalho: Chapéu ou boné para se proteger do sol, triângulo e baqueta nas mãos. Na costa, um tubo de flandres, material laminado e estanhado próprio para o acondicionamento de alimentos, que quando cheio com os cascalhos, chega a pesar 10 quilos. Os mais antigos usavam uma camisa branca de tecido leve para melhor enfrentar o calor, calça da mesma forma, chapéu de palha, chinelos ou andavam descalços. Atualmente podemos ver vendedores usando camisa regata e bermuda.

Qual a origem do cascalheiro e desse doce? Esse vendedor é típico da região Nordeste, onde o doce recebe os nomes de “taboca (Salvador), […] cavaco chinês (Aracaju, Maceió, Recife, João Pessoa, Natal), ou ainda cavaquinho, especialmente na capital pernambucana. […] Em Fortaleza, pode ser chamado também de chagadinha ou chegadim” (ARAGÃO, 2013, p. 425). O cascalho, como é chamado em Belém e Manaus, é um doce de origem Ibérica, com referências na Espanha e em Portugal desde o século XIII, onde é chamado de barquillo (Espanha) e barquilho (Portugal) (ARAGÃO, 2013, p. 426). Popularizado nos séculos XIX e XX através de atividades ambulantes, seu vendedor, o Barquillero ou Barquilhero, carregava um tubo de flandres, a barquillera (as pranchas onde a massa é assada também recebem esse nome), produzida geralmente nas cores vermelha e azul, tendo o nome do fabricante estampado, que possuía na tampa uma roleta (ARAGÃO, 2012, p. 86) semelhante à de um cassino, marcada com diferentes números. Ela era parte de um jogo de sorte: Se fosse um grupo de amigos, aquele que tirasse o menor número pagaria todos os doces. Individualmente, pagava-se por rodada. Caso a roleta parasse no número zero, todos os doces adquiridos eram perdidos.

A receita tradicional é uma mistura de farinha de trigo, açúcar, canela ou mel (atualmente adiciona-se corante), e água, sendo a massa assada entre duas pranchas de ferro (ARAGÃO, 2013, p. 426). Na América Latina, em países como México, Uruguai, Venezuela, Colômbia e Costa Rica vende-se um doce semelhante de nome oblea (ARAGÃO, 2013, p. 439), biscoito fino de farinha de trigo recheado com doce de leite, leite condensado e chocolate.

Em Manaus, a referência mais antiga encontrada sobre os vendedores de cascalho data de 1912, em um caso de polícia: No dia 15 de setembro de 1912, Francisco de Almeida, “vendedor duma guloseima, vulgarmente conhecida pelo nome de chegadinho”, se dirigiu ao bairro dos Tocos (Aparecida) para vender seus produtos. Lá chegando, na rua Xavier de Mendonça, foi chamado por um homem, Manoel Felix de Araújo Filho, interessado nos doces. Francisco Almeida vendia três chegadinhos por um tostão. Manoel não os quis comprar diretamente, tentando primeiro a sorte: Na tampa do tubo de flandres, existia uma espécie de roleta com um marcador que apontava para diversos números. Dependendo do número em que caísse, o cliente ganhava o resultado em chegadinhos. Manoel Felix girou a roleta, que parou no número três. Ele, no entanto, não se conformou, exigindo que lhe fossem entregues quatro unidades. A partir daí, os dois passaram a discutir, tendo Manoel atingido Francisco com uma bengalada na cabeça. Em resposta, Francisco atirou-lhe seu triângulo, utilizado para atrair os fregueses, em sua cabeça. Manoel, enfurecido, desferiu uma facada no tórax de Francisco, que morreu no local, às 11:15 da manhã1. No tribunal, em 1913, julgado por assassinato por motivo torpe, foi condenado a 30 anos de prisão2. Esse, até o momento, é o registro mais antigo sobre a atuação desses vendedores na cidade, podendo, no entanto, ser este um tipo urbano ainda mais antigo. Interessante notar que, à maneira dos vendedores Ibéricos, seu tubo de flandres também possuía uma roleta na tampa, utilizada para o jogo com os clientes.

Foi de grande valia para a pesquisa a leitura dos memorialistas. Moacir Andrade registra a atuação dos vendedores de cascalho ao lado de outros trabalhadores como o vendedor de puxa-puxa, o vendedor de pirulitos, o vendedor de garapa, o vendedor de sorvete e o vendedor de bolo, entre as décadas de 1920 e 1930 (ANDRADE, 1985, 2006). Ainda de acordo com esse autor, por volta de 1935 o preço desses doces não ultrapassava um tostão cada (ANDRADE, 1985, p. 116-117), conservando quase o mesmo valor registrado no caso de 1912. O historiador Antônio José Loureiro (77) se lembra desses vendedores em sua infância, entre o final dos anos 1940 e início dos anos 1950, no bairro Praça 14 de Janeiro. André Vidal de Araújo se questionou se, além dos outros tipos populares, alguém se lembrava do “homem pobre do chegadinho” (ARAÚJO, 2003, p. 392).

Elza Souza (65), que passou sua infância e adolescência no bairro de São Raimundo, relata o seguinte:

Tenho muita saudade daquele cascalho redondo e cor de pele, diferente dos de hoje, laranjados por corantes. Isso era na década de 1960… Lembro do gosto que procuro até hoje nos cascalhos, mas parece que o bom costume morreu. Aqui no Conjunto Tocantins (bairro Chapada) um jovem passava toda noite tocando o tlem, tlem, que chama o freguês. Não o tenho visto muito.

O relato da senhora Elza Souza nos permite perceber as mudanças ocorridas no cotidiano da cidade, com a diminuição da atuação desses trabalhadores, alguns dos quais mudaram de ramo ou deixaram essa atividade, bem como a composição do doce, alterada, como diz a depoente, com a adição de corantes. Além dessas mudanças, percebe-se como o som do triângulo fica marcado na memória das pessoas. Sobre essa associação entre o som do triângulo, a venda do cascalho e as lembranças de infância, diz Gilberto Freyre:

Interessante de observar é que certos doces, vendidos por ambulantes, estão associados, no Nordeste, sons que, como o da campainha de Pavlov, em cachorros, despertam em meninos e adultos predisposições específicas de paladar: o som do triângulo dos chamados cavaquinhos, por exemplo (FREYRE, 2007, p. 49 apud ARAGÃO, 2013, p. 425).

O som do triângulo atrai, faz emergir memórias de outras épocas que ativam a vontade de comprar o doce. O cascalheiro carrega em sua figura diferentes aspectos de diferentes culturas. O triângulo que ele toca é um instrumento musical originário da Idade Média, também da Península Ibérica, vindo de Portugal, onde era utilizado em celebrações religiosas, se expandindo posteriormente no restante da Europa a partir do século XIV, passando a ser empregado em orquestras no século XVIII. No Brasil, com raízes no Nordeste, a musicalidade do forró, do xote e do baião lhe deram um aspecto singular (ARAGÃO, 2012, p. 16 ; ARAGÃO, 2013, p. 432-434). O nome chegadinho, como o doce é chamado em Fortaleza, e aqui citado no caso de 1912 e por André Vidal de Araújo (1956, 2003), pode ser uma pista de que para o Norte eles possivelmente vieram nas sucessivas ondas de imigração nordestina, principalmente vindas do Ceará, verificadas em diferentes momentos de nossa História.

O cascalho é produzido em algumas fábricas espalhadas por diferentes zonas da cidade. Os cascalheiros o compram por 0,50 a unidade, revendendo-o por 2,00 reais ou na conhecida promoção de três unidades por 5,00 reais (PRATA, 2012, p. C4-C5). O antigo era empilhado, pego pelo vendedor com um guardanapo de papel e entregue na mão do cliente. Hoje, no entanto, já é possível encontrá-lo de forma padronizada em embalagens de plástico individuais, sendo vendido ao lado da broa e de outros doces.

Aguinaldo Nascimento Figueiredo (59), professor e historiador, lembra de sua infância e adolescência dos vendedores Zé do Cascalho, já bastante idoso na época, que atuava na área do Cajual, no Morro da Liberdade; e do Mané Periquito, que atuava nos bairros de Santa Luzia e Educandos. Justino Horácio de Souza (64) trabalha como vendedor ambulante há 33 anos, vendendo cascalho desde 2010. Vindo de Coari em 1982, criou nove filhos com a venda picolé, leite e cocada, mas para ele o melhor de todos os produtos é o cascalho, o qual chega a vender cerca de 150 a 200 unidades nos finais de semana (PRATA, 2012, p. C4-C5). Hamilton Leão (49), escritor, lembra-se com detalhes do cotidiano de um vendedor que atuava na zona Sul entre as décadas de 1970 e 1980, além de outro que perpetuou o trabalho desse profissional:

O cascalheiro já com seus 70 anos de idade era uma figura conhecida nas ruas dos bairros pelos badalos insistentes de seu triângulo para anunciar a venda de cascalhos. Sua peregrinação diária era como um sacerdócio e a criançada já o esperava ansiosamente ao ouvir o singelo tocar do instrumento de trabalho daquela figura simpática que carregava os esperados amarelos cones doces num tambor de alumínio. Casas onde tinham bastantes crianças era a certeza da venda de seu produto, pois ficava insistentemente tocando o triângulo com seu som inconfundível de telengotengo, telengotengo, telengotengo, até a criança aparecer e comprar o esperado doce crocante da tarde. Os pais as vezes ficavam em situação de vergonha quando os filhos caindo em choro queriam deliciar do diário cascalho, mas não tinham como pagar. Mas isso não era problema para o querido cascalheiro, que sempre negociava com os pais e fiava para ser pago outro dia.

Bons momentos aqueles vividos na infância, ao deliciar aquele petisco doce e crocante feito de farinha de trigo e baunilha, que fazia um gostoso barulhinho ao ser mastigado e derretido na boca. A vontade de comer mais um ficava, mas era preciso se preparar para outro dia e com uma moedinha separada, porque, com certeza, ele estaria lá com seu insistente telengotengo, telengotengo, chamando-nos para provar mais uma vez o cascalho amarelo. O tempo se foi e com ele a lembrança do antigo cascalheiro, morador do bairro Mauazinho e hoje falecido, que percorria a ruas dos bairros da zona Sul para levar alegria com o toque de seu triângulo anunciando seus bons cascalhos. Hoje, para recordar aqueles momentos, a figura do saudoso cascalheiro foi continuada pelo Sr. Delson Carvalho que diariamente, vindo do bairro Jorge Teixeira peregrina a tarde pelas ruas dos bairros da zona Sul para anunciar o velho e gostoso cascalho, tocando seus instrumentos de sons audíveis a longa distância, fazendo lembrar os bons momentos de infância. Telengotengo, telengontengo, telengotengo.

Além de outros aspectos vistos em relatos anteriores, Hamilton cita um bastante importante naquelas décadas: a questão de fiar o doce, de receber o pagamento no outro dia. Era uma relação de sobrevivência entre o vendedor e a clientela, baseada na confiança que era construída diariamente através de diálogos, contatos e pelo desejo do cascalheiro de vender o seu produto e dos pais de verem os filhos satisfeitos consumindo o doce. Vale lembrar que um único vendedor poderia ser conhecido em vários bairros, pois o cascalheiro, em média, percorre por dia cerca de 10 a 15 quilômetros.

A caracterização, a receita, os tempos mudaram. A atuação do cascalheiro, assim como a de outros personagens urbanos como o vendedor de rala-rala, o pela-porco (cabeleireiro informal) e a rezadeira, vem diminuindo progressivamente. Essa é uma consequência da urbanização acelerada, que traz em seu bojo transformador, raramente planejado, a padronização e a exclusão do que antes era bem-visto ou recorrente na vida da população. As mudanças são perceptíveis. O cascalheiro está integrado à memória coletiva, esta entendida como “o que fica do passado no vivido dos grupos ou o que os grupos fazem do passado” (NORA apud LE GOFF, 1996, p. 472). O registro de sua atuação e relação com o meio em que está inserido garante a preservação de sua identidade social enquanto parte de um grupo reduzido de trabalhadores do meio urbano local.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANDRADE, Moacir. Manaus: ruas, fachadas e varandas. Manaus: Gráfica de Gracimoema Sampaio, Humberto Calderaro, 1985.

ANDRADE, Moacir. Acontecimentos de um Amazonas de Ontem. Manaus: Imprensa Oficial do Amazonas, 2006.

ARAÚJO, André Vidal de. Introdução à Sociologia da Amazônia. 2° Ed revista, Manaus: Editora Valer/Governo do Estado do Amazonas/Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2003. (Coleção Poranduba).

ARAGÃO, Thaís A. Doce som urbano: O triângulo e as territorializações dos vendedores de chegadinho em Fortaleza. Dissertação (Planejamento Urbano e Regional), PROPUR-UFRGS, 2012.

ARAGÃO, Thaís A. O triângulo e o biscoito fino para as massas: reverberações culturais de uma prática ambulante. In: 9o Encontro Internacional de Música e Mídia, 2013, São Paulo. O gosto da música – 9o Encontro Internacional de Música e Mídia. São Paulo, 2013. p. 424-440.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4° Ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

PRATA, Lucas. O triângulo anuncia a chegada do 'cascalheiro'. Em Tempo, 25/09/2012, p. C4-C5.

FONTES:

Jornal do Comércio, 15/09/1912

Jornal do Comércio, 19/02/1913

ENTREVISTAS:

Antônio Loureiro, 14/08/2017

Aguinaldo Nascimento Figueiredo, 14/08/2017

Elza Souza, 15/08/2017

Hamilton Leão, 17/08/2017

NOTAS:

1 Jornal do Comércio, 15/09/1912

2 Jornal do Comércio, 19/02/1913