Lugares Pitorescos de Manaus II

O espaço urbano, ao longo do tempo, não sofre mudanças apenas em sua fisionomia, no espaço construído, mas na relação que a sociedade mantêm com o meio. Nomenclaturas de origem popular, secularmente utilizadas como referência para praças, ruas, becos e formações geográficas, herança medieval longínqua, sucumbem às mudanças das ‘oficializações’, às integrações a outros bairros e ao esquecimento, subsistindo em alguns momentos na pena do jornalista ou do cronista de época. Nessa segunda parte do texto serão abordados os seguintes lugares: Costa D’ África, Beco do Rego da Maria Pia, Cidade das Palhas, Buraco do Pinto, Canto do Quintela, Bairro Preguiça, Bairro dos Bilhares e Curva da Morte.

COSTA D' ÁFRICA: A Costa D' África foi uma região existente em Manaus na época da província, com referências desde a década de 1860. Essa área, considerada um bairro na época, era habitada por africanos livres. Em 1866, Gustavo Ramos Ferreira, vice-presidente da Província do Amazonas, registrava que existiam no Amazonas cerca de "57 africanos livres, já de posse de suas respectivas cartas de emancipação" (SAMPAIO, 2005, p. 2). Os moradores desse bairro, já livres, conseguiram integrar-se, em parte, na sociedade da época, ocupando cargos públicos, militares e servindo de mão de obra em construções na capital. A Costa D' África estava localizada em terras ao Norte do antigo Cemitério de São José (área do Atlético Rio Negro Clube, em frente à Praça da Saudade), entre as ruas Leonardo Malcher e Luiz Antony. Os registros mais significativos desses africanos de Manaus foram feitos em uma casa da Estrada de Epaminondas durante a expedição de Louis e Elizabeth Agassiz e reproduzidas na obra Viagem ao Brasil (1865-66).

BECO DO REGO DA MARIA PIA: De origem popular, o antigo Beco do Rego da Maria Pia está localizado no bairro de Aparecida, começando na rua Xavier de Mendonça e passando por trás da Escola Estadual Cônego Azevedo. Nesse beco, há décadas, morou uma avantajada senhora portuguesa de nome Maria Pia, que todos os dias, pela manhã, tinha o hábito de jogar os detritos de seu penico pela janela de casa. Adiciona-se o fato de que os detritos caiam em sua pequena horta, sendo que o que nela era plantado (frutas, legumes e verduras) era posteriormente vendido na feira do bairro. Esse beco também era chamado de Tapa-Guela e beco do Pai da Vida. O beco já não recebe mais essas nomenclaturas populares, sendo conhecido apenas como Beco da Escola.

CIDADE DAS PALHAS: No início dos anos 1960, o Dr. Cezar Najar Fernandes, engenheiro agrônomo peruano, indignado com a situação dos moradores da Cidade Flutuante, grande favela fluvial existente desde a década de 1920, decidiu, junto de alguns amigos, criar um bairro em terras próximas do Estádio Vivaldo Lima, o qual ajudou a construir. Foram abertos caminhos, foi feita a topografia, o arruamento e a divisão dos lotes. Essas famílias que saíram da Cidade Flutuante começaram a construir casas de madeira e palha nesse local, que ficou conhecido como Cidade das Palhas.

BURACO DO PINTO: O Buraco do Pinto foi uma depressão existente entre a rua Ramos Ferreira e as avenidas Joaquim Nabuco e Major Gabriel. Por essa depressão passavam os igarapés do Aterro e de Manaus. Por décadas essa região foi palco de acidentes de trânsito e de reclamação dos moradores do Centro, pois além de ser perigosa para o tráfego, servia de lixeira a céu aberto. Sobre a nomenclatura, diz o folclorista e historiador Mário Ypiranga Monteiro, existem duas versões sobre sua origem. A primeira, fantasiosa, seria a de que, em um dia de chuva, uma pessoa teria encontrado nessa depressão um pinto. A segunda seria a de que o nome teria origem em um taverneiro chamado Pinto, morador da Joaquim Nabuco. A nomenclatura, no entanto, ainda de acordo com Mário Ypiranga, teria por nome oficial Capitão Manuel Tomás Pinto Ribeiro, segundo Escriturário do Tesouro Estadual falecido em 02/06/1917. Coube à população dar o nome de ‘Buraco do Pinto’. A área sofreu um primeiro aterro em 1944, na administração municipal de Francisco do Couto Vale. Em 1957, na administração do governador Plínio Ramos Coelho, o Buraco do Pinto foi definitivamente aterrado e asfaltado.

CANTO DO QUINTELA: O Canto do Quintela compreende o cruzamento das avenidas Sete de Setembro e Joaquim Nabuco, onde funcionou o primeiro supermercado CO (Casas do Óleo), da família Assayag. Bem antes de funcionar esse empreendimento, existiu nesse local a Mercearia Quintela, de proprietário português, que deu origem à nomenclatura popular. A referência mais antiga sobre essa mercearia data de 1906, através de um anúncio publicado no 'Almanaque Brinde Palais Royal (1906, p. 130), no qual lê-se o seguinte:

"Mercearia Quintella, de Quintella & Irmão - N' esta bem acreditada casa encontra-se sempre um repleto sortimento de todos os generos alimenticios quer nacionaes ou estrangeiros. Tem sempre em deposito grande sortimento de louças de barro como taes: FILTROS, TALHAS, POTES, BILHAS, vasos para plantas, etc. Variado e grande sortimento de louças finas de porcellana, pó de pedra, granito, como sejam: PRATOS, CHICARAS, TIGELLAS, etc. Especialidade em COPOS DE CHRYSTAL, VIDRO e CANDIEIROS DIVERSOS. Preços sem competência. Rua Municipal, 94 – Manáos".

Em notícia publicada no Jornal do Comércio, em 04/09/1917, dizia-se que “A rua Municipal, canto da mercearia Quintela, descia o bond numero oito, linha de avenida-circular” (1). Em outra notícia, de 25/01/1930, escrevia-se que “Por futil motivo Antonio Souza aggrediu hontem, ás dezenove horas, no canto do Quintela, a Manoel Sebastião da Silva” (2). No Canto do Quintela viveu a violinista Ária Paraense Ramos, morta aos 19 anos em 17 de fevereiro de 1915 em um acidente no Ideal Clube.

BAIRRO DO PREGUIÇA: O bairro do/da Preguiça estava localizado entre as ruas Pico das Águas, Maceió e João Alfredo. A primeira versão de sua origem popular, diz Mário Ypiranga, é muito simples: em um afluente do Igarapé da Cachoeira Grande, passando pela parte de trás do Parque Amazonense, encontraram uma preguiça. O historiador, no entanto, após pesquisas, encontrou referências de que naquele local residiu um morador de nome José dos Santos Preguiça, operário pintor, tirador de goteiras e consertador de pontes, com referências de seus serviços desde 1899. Em 28 de julho de 1917, os moradores daquele bairro fizeram um abaixo-assinado pedindo que o nome fosse mudado para Nery da Fonseca (3).

BAIRRO DOS BILHARES: O Bairro dos Bilhares corresponde ao atual bairro de São Geraldo, na zona Centro-Sul. O nome Bilhares fazia referência à Casa Bilhares, bar e casa de jogos propriedade do desembargador Floresta Bastos. O acesso se dava pelos bondes da Companhia de Transportes Villa Brandão (1893), que fazia a rota entre o Mercado Público e a Cachoeira Grande, no início do que viria a ser o bairro de São Jorge. O nome do bairro foi alterado para São Geraldo em 1950, por ação dos Padres Redentoristas. Em uma nota publicada no Jornal do Comércio em 07/10/1950 lê-se o seguinte: “Terá início, hoje, no bairro de São Geraldo, antigo Bilhares, a quermesse promovida pelos Padres Redentoristas, cujo produto reverterá em favor das obras da construção da capela” (4). A Capela do Preciosíssimo Sangue foi inaugurada em 1953. Apesar da mudança, o nome Bilhares continuou sendo utilizado por um bom tempo como referência para aquele local, como atestam notícias até a década de 1980.

CURVA DA MORTE: Existem menções à Curva da Morte pelo menos desde a década de 1950, sendo um indício de que os acidentes que popularizaram aquela parte do bairro da Cachoeirinha eram de longa data. O anúncio de uma peça teatral de 1959 informa que o espetáculo estava “situado na Av. Waupés, junto da Curva da Morte, bairro de Cachoeirinha, sob a direção de Walter Freitas” (5). A Curva da Morte compreende o cruzamento da Av. Castelo Branco (antiga Waupés) e da rua Ipixuna. Por um bom tempo o bairro permaneceu sem pavimentação e entrecortado por igarapés, o que fazia os motoristas que vinham pela Castelo Branco, para evitar a Silves, ter que dobrar na Ipixuna, rua fechada e de difícil tráfego. Nesse cruzamento ocorreram graves acidentes com vítimas fatais entre as décadas de 1960, 1970 e 1980. Algumas eram vitimadas na frente de suas casas, tentando atravessar para a outra parte da via (6). O número de mortos por acidentes de tráfego entre 1965 e a metade do ano de 1966 era de 67 pessoas (7).

São vários os lugares pitorescos, de nomenclaturas curiosas, esquecidos ou não, que marcaram a população da cidade, que utilizava outras formas, um aspecto geográfico, um comércio, um morador ilustre, para se localizar no espaço e no tempo. Outros vão surgindo ao longo dos anos, como referência para ruas, becos, avenidas, praças e inúmeras invasões irregulares pela área urbana, que aos poucos tornam-se bairros. Daria para escrever um livro denso explicando as origens de cada um. São elementos de outras épocas, de outras mentalidades, de um cotidiano marcado por um ritmo mais lento de relações entre o homem e o meio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SAMPAIO, Patrícia Melo. Escravidão e Liberdade na Amazônia: notas de pesquisa sobre o mundo do trabalho indígena e africano. 3° Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2005.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Manaus, Editora da Universidade do Amazonas, 1998.

BESSA, Roberto. Memorial Aparecida: síntese da história de um bairro. Manaus, Edições Muiraquitã, 2010.

ALLAN, Virgínia. São Geraldo – Uma História em duas conjugações: Passado e Presente. Manaus, Edições Muiraquitã, 2008.

FONTES:

Jornal do Comércio, 04/09/1917

Jornal do Comércio, 25/01/1930

Jornal A Capital, 28/07/1917

Jornal do Comércio, 07/10/1950

Almanaque Brinde Palais Royal, 1906

NOTAS:

1 Jornal do Comércio, 04/09/1917

2 Jornal do Comércio, 25/01/1930

3 Jornal A Capital, 28/07/1917

4 Jornal do Comércio, 07/10/1950

5 Jornal do Comércio, 19/12/1959

6 Maria Rejane Rocha, aos 13 anos, morreu ao ser atropelada pelo chofer Walmir Gonçalves Barros na frente de sua casa, na rua Ipixuna, n° 1081, enquanto tentava atravessar a via. Jornal do Comércio, 26/06/1972.

7 Mortos por acidentes de tráfego, 1966. A. Raposo & Cia.