Um capítulo de memórias

Eis alguns trechos extraídos de uma das obras literárias do, senão o maior, um dos maiores filósofos brasileiros - Olavo de Carvalho.
Chamo a atenção, para aquilo que o próprio autor reiteradamente ressalta em seus debates e paletras, de nunca tentarmos intrepretar um pensamento e/ou contexto de uma obra, a partir de informações resumidas e/ou superficiais. É preciso vencer a preguiça e a ânsia de querer opinar sobre algo, sem se aprofundar e esgotar a busca pelo conhecimento sobre as informações existentes.

Este artigo foi publicado no Diário do Comércio, em 23 de junho de 2008
[...] descobri o abismo imensurável e sem fundo que pode haver entre a realidade da nossa alma e as imagens padronizadas que somos chamados a personificar na sociedade, imagens pelas quais os outros nos reconhecem, que eles chamam pelo nosso nome e nas quais, pelo efeito da repetição, acabamos por acreditar, sufocando a memória da nossa experiência efetiva e substituindo-a por um arranjo cômodo de aparências, que por sua vez se amoldam tão bem às necessidades da comunicação diária que acabamos por achar são o verdadeiro "eu". (pág. 92)

[...] Toda a riqueza e o interesse da convivência humana consiste em usar os estereótipos como meros bilhetes de ingresso nesse recinto, jogando-os fora tão logo entramos mais fundo na alma alheia. Mas como poderíamos fazer isso, se tudo em volta nos convida a encarnar os estereótipos cada vez mais esforçadamente, com um
arremedo de sinceridade cada vez mais perfeito, até acabarmos acreditando que eles são nós?
As sociedades humanas podem ser comparadas - e julgadas - pelo seu sucesso ou fracasso em transmutar a linguagem comum em instrumento do encontro genuíno entre os seres humanos. E, de tudo o que vi e vivi depois, concluí que a sociedade brasileira se destaca pelo total desinteresse em fazer isso, pela acomodação complacente a uma convivência feita só de estereótipos. Foi isso o que o conde Keyserling, aquele observador
arguto, notou ao dizer que, enquanto nos outros países as pessoas só imitam aquilo que desejam tornar-se no futuro, os brasileiros se contentam com a imitação enquanto tal, esmerando-se nela a ponto de esquecer que é possível ser algo na realidade e acabando por acreditar que a única coisa a esperar da vida é o sucesso no fingimento. (pág. 93)

[...] O Papa João Paulo II acertou em cheio quando disse que os brasileiros são cristãos no sentimento, mas não na fé. Não existe fé sem vida interior, mas a vida interior começa pelo ingresso naquele recinto fechado, sombrio, e pelo esforço de comunicar o incomunicável. O brasileiro acha isso angustiante demais e buscando alívio numa familiaridade fácil, acaba por se transformar no seu próprio estereótipo. (pág. 94)

DICIONÁRIO:
Arguto - Que tem capacidade para perceber com facilidade as sutilezas das situações.
Arremedo - Imitação mal feita ou deficiente.

Confesso minha dificuldade em tecer comentários a respeito do texto acima. Me arrisco a dizer (e posso estar equivocado) que o cerne da reflexão a ser feita deve partir da formação do "eu" interior diante da interação do "eu" exterior com as demais pessoas. Em outras palavras, neste processo de convivência em sociedade, buscamos filtrar de modo a absorver somente aquilo que nos interessa em função do que desejamos nos tornar, ou ao custo de poder ingressar e ser aceito em determinado grupo, abrimos mão do filtro, absorvendo e nos tornado aquilo que interessa ao grupo em questão? Nesta condição, o "eu" não forma o estereótipo, e sim, o estereótipo forma o "eu".  

Fonte: CARVALHO, Olavo de. O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. 8ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2014.
SEBASTIAO
Enviado por SEBASTIAO em 19/09/2017
Reeditado em 07/10/2017
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