Crítica do filme "O apartamento", de Asghar Farhadi

Há muito que uma questão fomenta acalorados e apaixonados debates entre teóricos do cinema, críticos e cinéfilos em geral: Existem cinemas nacionais? Ou seja, é possível falar de um cinema brasileiro, americano, francês, argentino, japonês, ou iraniano? Ou estará o cinema tão entranhado daquilo que um dia se convencionou chamar globalização, ou pós-globalização, que seria impossível isolá-lo geográfica, política e culturalmente? Para além de fluxos transnacionais de capital e comunicação, ou de co-produções cinematográficas que trazem capital, elenco e equipe de produção de vários países, vêem-se em obras das mais várias “nacionalidades” possíveis questões que parecem ser pertinentes à condição humana, não só em uma perspectiva eurocêntrica (embora também), mas àquilo que nos constitui indivíduos, cidadãos e membros de uma comunidade, seja no Recife, em São Paulo, Nova Iorque, Paris, Londres, Tóquio, Seul ou Teerã. Isso, a despeito da língua falada nos filmes, dos cenários, dos costumes retratados, das especifidades daquela comunidade ou região onde se passa a narrativa filmíca; muitas tão carregadas de inquietações e dramas humanos aparentemente “universais”, que parece ser um lugar nenhum, ou qualquer lugar.

Essas reflexões foram tomando vulto em mim assim que terminei de assistir ao filme “O apartamento”, coprodução (?) Irã/França, vencedor dos prêmios de melhor roteiro e ator no último Festival de Cannes, dirigido e roterizado pelo internacionalmente aclamado cineasta iraniano Asghar Farhadi; em conjunto com outras inquietações e reflexões, mais evidentes, e que se acumulavam em minhas impressões e emoções, na medida em que a narrativa fílmica se passava à minha frente, e imediatamente após o acender das luzes da sala de projeção. Porque tudo aquilo ali parecia apontar para questões que dizem respeito a todos nós como indivíduos, independes da língua falada, da cultura em que estamos inseridos, tais como: Até onde nos conhecemos? Se não temos total conhecimento acerca de nós mesmos, como podemos estabelecer relações com outros? Quais as reais motivações que norteiam nossas ações? O que de fato importa para nós?

Tais inquietações reflexivas, imediatas e evidentes, dizem respeito a dois aspectos (entre outros) que são tratados no filme: o mal estar do casal frente a uma situação de violência sexual que a esposa sofre, e é que é calada entre os dois; e a busca do marido por justiça, ou melhor, vingança.

Na trama, um casal de atores iranianos, Emad (Shahab Hosseini) e Rana (Taraneh Alidoosti) - ele além de ator é professor - certo dia é forçado a abandonar o apartamento onde moram, porque está desmoronando, sofrendo reflexos de uma obra próxima; e para não dormirem no teatro onde estão ensaiando e se preparando para encenar a peça “A morte do caixeiro viajante”, de Arhur Miller, aceitam a oferta do amigo e colega da companhia teatral Babak (Babak Karimi), que oferece ao casal um apartamento seu, cuja antiga inquilina se mudou, enquanto não encontram um lugar para ficarem em definitivo, ou voltarem para o antigo apartamento. Como o casal está sem local para morar, aceita a oferta do amigo, mesmo deixando claro que ali ficarão provisioriamente, até terem condições financeiras de encontrarem outro lugar para ficar. E lá se instalam, mesmo a despeito da antiga inquilina ter deixado um quarto trancado, levado a chave, e uma série de objetos pessoais dela e do filho ali. Mas este não é o único inconveniente que a situação suscita: na medida em que vão convivendo com os novos vizinhos, descobrem que a antiga moradora tinha uma vida “promíscua” e recebia a visita de muitos homens (aqui é interessante apontar que em nenhum momento a palavra “prostituta” é pronunciada no filme, mas fica evidente que esta era a “profissão” da antiga moradora).

O que eram apenas inconvenientes vão tomar uma dimensão trágica, quando uma noite um “amigo” da antiga moradora entra no apartamento, no momento em que Rana está sozinha em casa, já que ao acabar a peça, ela deixou Emad no teatro, pois este tinha um assunto a resolver por lá, e voltou desacompanhada para o lar. O estranho entra no apartamento e agride física e, aparentemente, sexualmente (a violência sexual nunca é dita textualmente no filme, mas sugerida). Quando Emad chega em casa, não encontra Rana; esta tinha sido socorrida pelos vizinhos, que a levaram para um hospital, depois que ouviram barulhos e gemidos vindos do apartamento de Emad e Rana, e quando foram ver o que estava acontecendo, encontraram-na desacordada.

A partir daí o filme irá focar no desconforto de Emad em lidar com o silêncio da esposa, que não quer falar com ele sobre o que aconteceu, não quer procurar a polícia; e, ao mesmo tempo, cobra sua presença a seu lado, a sua compreensão. Tal desconforto de Emad é acentuado pelo fato do estranho não ter invadido, ou arrombado seu apartamento, mas ter tocado o interfone e ter tido a porta aberta por Rana, entrando sem forçar nada. De fato, quando o estranho chega e interfona para o apartamento, Rana, acreditando ser Emad, não faz pergunta alguma, apenas abre a portaria do prédio, atráves do interfone, a seguir abre a porta do apartamento, e entra no banheiro, onde será agredida. Essa sucessão de fatos, que parecem apontar com a concordância e a facilitação de Rana em permitir a entrada do estranho, gera um mal estar no marido, que é acentuado pelos silêncios da esposa e por insinuações dos vizinhos de que o que aconteceu foi muito grave.

Mas não só nesse desconforto foca-se a narrativa. Há também o desejo de vingança de Emad, que parte para uma caçada ao estranho que agrediu sua esposa e (aparentemente) também sua honra.

Na medida em que não consegue compreender exatamente o que aconteceu com sua mulher, em que esta nunca efetivamente lhe conta o que houve, que silencia e pede que não procure a polícia, falando de seu desconforto em ter que relatar às autoridades o que se passou, e inclusive ela própria admtindo que seria difícil explicar porquê abriu o apartamento para o agressor, já que não houve invasão ou arrombamento do domícilio; acrescentado à sua indignação com o amigo Babak, que não contou sobre a antiga moradora, sobre o fato dela receber homens ali, no passado – em determinado momento do filme Emad, tomado de raiva e de indignação contra o amigo, diz para Babak que pensava em ali, naquele apartamento, conceber e ver seu filho nascer. Logo ali, em um local que antes era usado para encontros sexuais, ressaltando seu repúdio a tal atitude de Babak, inclusive porque já havia dito isso ao amigo, no dia da mudança – enfim, esses sentimentos vão se acumulando em Emad, que vai se tornando cada vez mais irascível na medida em que o filme avança, vai se tornando cada vez mais intolerante e impaciente com a esposa, com o amigo Babak, com seus alunos. Seu pensamento vai se tornando fixo e obcecado na vontade de se vingar em quem agrediu sua esposa (e também seu honra); e toda sua vida vai perdendo o interesse, ou vai perdendo o foco – o trabalho como professor é comprometido pelo seu cansaço, pois não consegue dormir, atormentado pelo que aconteceu, o que reflete na mudança de atitude para com seus alunos, antes leve e bem humorada; agora pesada, impaciente, irritada. Assim também é no teatro. Ali ele não consegue mais se concentrar e “entrar” em seu personagem na peça, chegando inclusive a, em um momento da encenação de uma cena em que contracena com Babak, sair do texto original, e agredir verbalmente o amigo, aproveitando-se do que seria um improviso em cena.

Essa profusão de sentimentos negativos, de raiva contida, de vergonha pelo que aconteceu – até porque parece ficar evidente a preocupação com sua honra – o apartamento não foi invidado, o estranho entrou à vontade, a polícia não foi acionada, os vizinhos estranhando sua passividade, a esposa em silêncio, dividida entre pedir que ele não faça nada, fique apenas a seu lado; mas cobrando uma atitude dele, ou seja, que faça alguma coisa, que fique ao lado dela, que lhe compreenda. Enfim, todo esse amálgama de sentimentos lança Emad para uma caça ao agressor, uma investigação individual, que o levará ao embate final com o estranho, cujo cenário será o apartamento em que ele antes morava com a esposa, onde começou o filme.

Desse confronto final, em que a violência é represada em um paciente “interrogatório” do agressor, conduzido por Emad, onde ele tortura psicologicamente (e um pouco fisicamente) o agressor de sua esposa, que se revela um senhor idoso e com problemas cardíacos, chamado Nasser (Farid Sajjadi Hossein ), e em que ele convocará sua esposa e a família do agressor para assistirem ao embate final; resultará, ao cabo e ao fim, apenas no vazio, no desconforto, no mal estar, no silêncio, no aprofundamento da incompreensão mútua entre o casal, e na impossibilidade de levar adiante aquela relação.

Emad consegue saborear sua vingança, dá vazão à todo seu ódio. Embora contido na condução de seu ato vingativo – quase nunca ele levanta a voz, ou agride fisicamente o algoz de sua esposa, com exceção a um soco, ou tapa, que desfere na face do idoso, quase ao fim de sua revanche – ele sacia sua sede de “justiça com as próprias mãos”, sua sede de vingança. E, mesmo atendendo ao pedido de Rana de não contar à família do agressor o que ele fez (esse era o intuito inicial de Emad, desmascarar e desonrar o agressor perante sua famíia), destroí o velho, torturando-o psicologicamente, trancando-o por horas em um quarto escuro do apartamento abandonado e, finalmente, socando-o no rosto e atirando à cara o dinheiro que o velho havia deixado em seu apartamento, depois de agredir sua esposa, como forma de pagamento pelos “serviços sexuais” que lhe foram prestados.

Ao fim de tudo, definitivamente saciado em sua sede de vingança pelo triunfo e pelo gozo obtido ao destruir aquele que, muito além de ter agredido e causado sofrimento à sua esposa – mas agrediu especialmente a ele, Emad, em sua honra e reputação como macho – apresenta-se um quadro de destruição não apenas do agressor de sua esposa. Parece (e a cena final do filme evidencia isso, ao capturar, em close up, os rostos do casal, sentados no camarim do teatro, sendo maquiados, momentos antes de entrarem em cena no palco, com expressões de desalento e de vazio) que todos ali saíram perdendo, mas principalmente Emad e Rana. Ele, saciado em seu ódio e em sua vigança, não consegue se aproximar da esposa, muito pelo contrário, aquilo tudo parece ter acentuado um vazio que havia antes entre eles. Ela, tragada pela trama de vingança do marido, parece conseguir enxergar, na tortura que o companheiro desencadeia contra o agressor dela, a falta de próposito de tudo aquilo, e até onde poderá levá-os: à perda da humanidade, da decência e da capacidade de dialogarem entre si. O que Rana parece não conseguir enxergar é que ela não estava ali, que tudo aquio não lhe cabia. Emad está tomado de convicções (muitas das quais nascidas de dúvidas – o que aconteceu naquele apartamento? Rana foi violentada? Permitiu que o estranho entrasse no lar deles?), sua única razão é o ódio. Para além da solidariedade e da preocupação com a companheira, sua honra foi ferida, sua reputação social foi arranhada. O silêncio e a incompreensão entre o casal há muito estava instalada naquela relação, talvez eles nunca tivessem se enxergado a si mesmos, ou mesmo enxergado um ao outro, dentro da relação. A sucessão de acontecimentos do filme, que tem seu desenlace no ato de vigança de Emad, apenas escancara que o casal nunca existiu, que equívocos, mal entendidos e incompreensões mútuas balizaram aquela união, se é que de fato tal união houve. Ao fim, resta apenas a destruição, não do agressor de Rana, mas do casal, da vida em comum entre ambos. Se é que eles efetivamente alguma vez se viram, se é que alguma vez eles existiram como casal.

Recife, 24 de Janeiro de 2017.

Marcio de Souza
Enviado por Marcio de Souza em 27/01/2017
Código do texto: T5894527
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