Análise do episódio de Inês de Castro, de Os Lusíadas, de Camões (Canto III, Estrofes 118-135)

Inês de Castro é caracterizada como “a mísera e mesquinha que depois de morta foi rainha”, por ser simplesmente uma ama da princesa D. Constança, a qual se casaria com o príncipe D. Pedro. Inês de Castro é desposada pelo príncipe, que se apaixonou por ela. O uso do vocábulo “mísera”, provavelmente, refere-se à condição trágica póstuma de Inês de Castro, enquanto que o vocábulo “mesquinha”, talvez, tenha certa referência ao não pertencimento de Inês de Castro à classe social monárquica.

O motivo da morte de Inês de Castro, segundo o narrador da epopeia em questão, é o Amor, o qual aparece em letras maiúsculas enquanto representação de uma divindade, embora se trate do sentimento amoroso. O Amor é, então, caracterizado como a força maior que obriga os corações humanos a se molestarem, e que, em face da sua tirania, condena o ser humano às lágrimas causadas pela morte.

Na estrofe 120, o narrador passa a contar mais detalhadamente o caso de Inês de Castro. Os versos “De teus anos colhendo grande fruto/ Naquele engano da alma ledo e cego/ Que a Fortuna não deixa durar muito sugere um estado de tranquilidade da personagem. A imagem construída para a tranquilidade da personagem, parece aludir a uma representação dos anos juvenis, nos quais a idealização do amor mostra-se amena e prazerosa diante do desconhecimento empírico (prático/concreto) desse sentimento. Se é que se pode falar em sentimento empírico ao tratar-se bem mais de abstração e de subjetividade. A imagística usada alcunha certa caracterização árcade (do movimento literário Arcadismo), no sentido de contemplação ingênua de elementos naturais causadores de reflexões acerca do amor.

Nas estrofes 122 e 123, o narrador apresenta o seu espanto diante da atitude do rei. O príncipe enjeita os desejados tálamos de outras belas senhoras e princesas porque o puro amor dele por Inês o faz desprezar toda e qualquer mulher. O velho pai sisudo, que respeita o murmurar do povo e a fantasia do filho, que não queria casar-se, determina tirar Inês do mundo, crendo que somente com o sangue da morte pode-se matar o fogo aceso do firme amor.

Na estrofe 124, alguns que sentimentos caracterizam o rei, Inês de Castro e seus algozes. Na estrofe 124, o rei é caracterizado pela piedade, desencadeada diante dos sentimentos dos algozes e do povo, e também, como um possível permissivo, ao ser persuadido à morte de Inês de Castro por parte do povo. Os algozes são caracterizados como aqueles que causam horror (horríficos), e o povo é caracterizado como os que estão imbuídos de falsas e de ferozes razões. Inês de Castro é caracterizada como magoada, não pela provável morte, mas pela saudade do seu príncipe e dos seus filhos.

Diante da descrição feita nos primeiros versos da estrofe 125, nota-se a imagem religiosa de Jesus Cristo perante o julgamento, afirmação corroborada pelo olhar piedoso de Cristo, mesmo estando ele sendo culpabilizado por razões ignóbeis. Acredita-se que essa alusão sugere uma comparação entre Jesus Cristo e Inês de Castro, uma vez que os mesmos foram injustiçados. A estrofe insere emoção sobre a situação de Inês de Castro quando da referência do temor da personagem em deixar seus filhos órfãos.

Nas estrofes 126, 127, 128 e 129, Inês tenta exortar a piedade de avô por meio da humanidade desse gesto diante dos netos do rei, recorrendo ao argumento da orfandade como um desrespeito à vida futura das crianças sem pais. O argumento é embasado pela utilização comparativa entre personagens órfãs da história (Rômulo e Remo) e os filhos de Inês, desencadeando uma proposição maior de que até os animais foram piedosos com as crianças (referência à loba que amamentou Rômulo e Remo), porque um avô haveria de não ter piedade dos seus netos.

O narrador de Os Lusíadas diminui a responsabilidade do rei diante da morte de Inês caracterizando-o como benigno que fora tocado pelas palavras de Inês, mas que acima de tudo, devia obediência ao seu povo, o qual não o perdoaria por ser contrário à morte de Inês. Afinal, existe um conflito, isto é, as vontades do rei em seu papel monárquico e as vontades do rei enquanto “sogro” de Inês. Os assassinos de Inês são caracterizados como ferozes em contraposição à imagem de cavalheiros que costuma lhes instituir.

Nas estrofes 131 e 132, compara-se a morte de Inês Castro com o sacrifício da jovem Policena. “Qual contra” é o elemento linguístico que estabelece a comparação. Os efeitos de sentido criados por tal comparação é a grandiloquência narrativa da epopeia de Camões, uma vez que se estabelece uma equiparação entre o texto clássico acerca do sacrifício de Policena (filha de Príamo e Hécuba que é sacrificada; mitologia greco-latina) e o texto de Camões. Pode-se explicitar que a comparação, nessas estrofes, referencia a morte de Inês de Castro como um fato tão importante como o sacrifício de Policena.

Nas estrofes 133, 134 e 135, a narrativa intensifica o valor trágico e o sentimento de tristeza recorrendo à comparação com fatos da Antiguidade Clássica (Atreu) e utilizando-se de uma antiga lenda, em que o sol horrorizado com certa ocasião se escondeu. Se coube ao sol e às ninfas do Mondego entristecerem-se com a morte de Inês de Castro, e em se tratando de um elemento figurativo da natureza (sol) e de divindades (ninfas), a tristeza seria em grau muito maior nos seres humanos, portanto mortais.

A narração desse episódio organiza-se como uma analepse, em decorrência dos tempos verbais utilizados, que são o pretérito perfeito e o pretérito imperfeito. Embora, na estrofe 134, quando o narrador usa “O cheiro traz perdido a cor murchada” nota-se uma quebra do tempo verbal utilizado até então na narração do episódio. A voz narrativa parece rememorar a ocasião da morte de Inês de Castro, bem como, propor ao leitor que essa morte ainda é chorada no tempo da narração. Misturam-se tempo do discurso e tempo da diegese.

A narrativa do episódio da morte de Inês de Castro organiza os momentos da história, quase que totalmente de modo linear, pois, inicialmente, tem-se uma prolepse que aponta para o desfecho do episódio (Aconteceu da mísera e mesquinha/Que despois de ser morta foi rainha), e, na sequência, a história apresenta-se apenas linearmente ao narrar a prisão de Inês, a súplica ao rei por parte da mesma, e a morte daquela. Não podendo se esquecer de mencionar as suspensões temporais quando das alusões mitológicas, isto é, pode-se entender que ao referencializar um contexto outro, o da mitologia greco-latina, a narrativa se deslineariza com o uso de analepses.

Os recursos estilísticos utilizados pelo narrador como intensificadores do sentido podem ser encadeados segundo o conceito de “narração dentro da narração”, já que o mais aparente na obra camoniana, e não apenas no episódio da morte de Inês de Castro, é, sobretudo, as referências clássicas como argumento de autoridade para confirmar a epopeia em questão como uma narrativa tão grandiosa quanto às epopeias de Homero. Uma espécie de mitologia particular é travestida pela mitologia clássica greco-latina, uma vez que o narrador utiliza dessa para a construção comparativa dos fatos e das personagens em qualificação semelhante. O solene/sublime repousa, sobremaneira, no efeito estético sugerido pelo uso da mitologia greco-latina, isto é, os acontecimentos da história de Portugal são narrados com a mesma equivalência grandiosa dos acontecimentos da história greco-latina.

Referencial bibliográfico:

CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Lisboa: Vega, 1995.