ANÁLISE LITERÁRIA - ANATOMIA FÚNEBRE - POR RENATO PASSOS DE BARROS

Mais um belíssimo e intrigante soneto decassílabo! Dessa vez, a energia poética frigatiana causa impacto aos olhos atentos de seus leitores/escritores quando canaliza seu repertório bélico de mortíferas metáforas na corrida fútil, materialista e insana da essência humana ao prazer curto, efêmero e, principalmente, mortal. Não enxergou tudo isso? Normal! A poética de Edna Frigato vai além do alcance da bengala e condena humanitas ao seu trágico e irreversível fim: a morte.

Mas o pior cego é aquele que não quer ver. Prefiro São Tomé - por ser desprovido de fé - acredita só no que vê. Mas que tenha capacidade então pra isso. Porque ver poesia é ver versos e versões atravessarem, subversivamente, as fronteiras da vista. Nesta Arte, Edna Frigato é especialista. Em “Anatomia Fúnebre”, a metáfora-síntese desse impactante soneto é a alegoria do pós-ressaca, do “day after”: visão gestáltica de ângulo escaleno e de pouco acesso à miopia em doses cavalares. Tal alegoria marcha lado a lado com a personificação contida no texto da epígrafe, erguendo estandartes de convergência filosófica/existencialista.

Na primeira estrofe, “A rosada alva carne delicada” faz referência (é uma das possibilidades de leitura) ao nascimento e infância, já anunciando, em seu conteúdo, que só é possível a manutenção dessa vida jovem e ereta graças a sua estrutura óssea cujo fio condutor da semiótica textual servirá de coluna vertebral, atravessando as quatro estrofes do soneto. Os versos “Essa estrutura viva é responsável / Pela bela silhueta de um corpo” iniciam a segunda estrofe descrevendo a dança de uma bela jovem (provavelmente de uma mulher madura) cuja coreografia com movimentos sensuais só é possível à bailarina devido (novamente) à sua estrutura óssea longitudinal: “Da diáfise oca – bailarinas tropo”.

Já na terceira estrofe, o sujeito-poético descreve a velhice – último ato dessa peça teatral vital...: real – numa situação física já caótica: “Erga a podre casca ver-te-á no ato / Frágil esqueleto, arcabouço reles”. O último terceto finaliza essa surpreendente dissertação poética sobre as fases vida com a inevitável morte: “Esse punhado de ossos vãos marfim / É tudo que nos restará de fato / Quando a morte traz a sentença fim”. Tão óbvio assim? Não. Porque o enfoque é outro. Lady Frig, em “Anatomia Fúnebre”, não pretende somente descrever as clássicas fases da vida: nascimento/infância; juventude/maturidade; velhice; morte. As quatro fases da vida (descritas nas quatro estrofes do soneto) são, somente, a isca para o leitor conseguir o peixe.

Portanto, a relevância literária de “Anatomia Fúnebre” não está em seu já esperado rebuscamento frigatiano da linguagem poética (tão próximo aos postulados estéticos de Augusto dos Anjos), nem no aparente conteúdo de natureza mórbida (e, nisso, até o título do soneto também contribui para tal vertente interpretativa). A discussão proposta aqui é outra. O tema, dessa vez, não é a morte, mas sim qual o legado deixado à posteridade após a morte? Ora, esse é o momento decisivo em que os estandartes da epígrafe e da metáfora-síntese (alegoria) são convocados à evidência.

Daí que a conclusão desse belo e inteligente poema é um convite à reflexão sobre o pós-ressaca – o Day after. Ou seja, o que mais restará depois de tanta luta por bens materiais, por prazeres mundanos da carne ou pela manutenção da beleza e da vaidade (expressa na bela e sensual dança da bailarina no segundo quarteto)? Qual o legado deixado por incessante peleja? Nos pressupostos argumentativos do poema, surgem tais questionamentos muito bem respondidos pelo próprio texto artístico. Ironicamente, o saco de ossos humanos que dão sustentação a toda essa injusta labuta será, melancolicamente, o único legado deixado pela humanidade, no sentido de que ele (indivíduo) não levará nada conquistado no plano terreno para o plano espiritual.

Portanto, de nada adiantará tanta riqueza material conquistada. Os pilares da vida física (os ossos) serão as únicas testemunhas de uma vida, nesse prisma, totalmente inútil: “Esse punhado de ossos vãos marfim / É tudo que nos restará de fato / Quando a morte traz a sentença fim”. Uma visão pessimista? Talvez, mas, em nenhum momento, o soneto deixa de ter também um ponto de vista, cruelmente, realista. Nesse sentido, “Anatomia Fúnebre” compõe o repertório poético de Edna Frigato não como um soneto hediondo cujo diálogo filosófico interage mais com a estética vanguardista de Augusto dos Anjos. Mas como uma crítica à modernidade no momento em que o Homem esquece (ou tenta esquecer) que toda essa odisseia pela vitória (e o que seria vencer na vida?) é tão inútil quanto à própria vida porque o ser humano nada mais é do que um patético colecionador de seus próprios ossos.

Obrigado por mais essa aula, Amor! Mil beijos! E até mais ler!

Renato de Passos Barros
Enviado por Edna Frigato em 05/10/2016
Código do texto: T5782291
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