Crítica do filme "Aquarius", de Kleber Mendonça

É tão difícil não gostar de um filme, quando você vai vê-lo com uma alta expectativa, quando há uma simpatia prévia por tal filme, uma vontade de apreciá-lo e entusiasmar-se com ele. É tão difícil não gostar de um filme quando este filme é recifense, e você é recifense, e se reconhece na tela, vê-se refletido nas referências, nas locações, nas águas e areias de Boa Viagem, na música de Reginaldo Rossi e Ave Sangria, nos salões do Clube das Pás, na lembrança da livraria Livro Sete e das Casas José Araújo, no sotaque falado pelos atores e figurantes, alguns até que você conhece de encontrá-los aqui e ali nas ruas e bares de Recife e seus arrabaldes, ou de trabalhos que fizeram juntos em algum momento da vida.

É tão difícil não gostar de um filme quando você é estudante de cinema, e consegue ver tal película para além do olhar de alguém que vai despretensiosamente ao cinema, apenas para se divertir ou “matar o tempo”, e enxerga o preciosismo e plasticidade de alguns enquadramentos e planos, movimento de câmeras e distribuição de atores e objetos na “mise-em-cène” , tão bem trabalhados que beiram o esnobismo e aparente necessidade de se evidenciar o quanto se conhece de cinema e da arte de filmar, o que leva o filme a ter alguns desnecessários minutos a mais de duração, tornando-o ao espectador um tanto enfadonho e cansativo, mas permitindo ao realizador o pleno exercício estético e estilístico, deixando ao fim do filme bem evidente suas digitais e assinatura do que é um “filme de autor”.

É tão difícil não gostar de um filme quando você é contemporâneo do diretor de tal filme, e se emociona com as músicas antigas de Roberto Carlos e Maria Betânia tocadas ao longo do filme, quando você é fã do Ave Sangria e ouvia, tempos atrás, o mesmo “LP” que em determinado momento da fita a personagem de Sônia Braga coloca na vitrola. É tão difícil não gostar de um filme quando você aprendeu a gostar do diretor em seus tempos de crítico de cinema do Jornal do Comércio do Recife, ou à frente do Cinema da Fundação do Derby, não sei quantas vezes por mim frequentado ao longo de tantos anos e de tantas e tão boas lembranças.

É tão difícil não gostar de um filme quando você, assim como grande parte dos realizadores e do elenco do filme, está indignado com os rumos do país, fez coro, solidarizou-se e vibrou quando os gritos de “Não vai ter golpe” foram ecoados no tapete vermelho de Cannes. É tão difícil não gostar de um filme quando você situa-se ideologicamente à esquerda e cerrou fileira com o filme em seu libelo contra o golpe perpetrado ao governo petista e seu enfrentamento ao Ministério da Cultura do governo ilegítimo (que de início foi até extinto, sendo recriado após vigorosos protestos de artistas e de militantes culturais do Brasil) e a alguns membros da comissão do citado ministério, que escolheu o filme brasileiro que vai disputar a indicação de melhor filme estrangeiro do Oscar, e que antecipadamente criticaram o diretor apenas por divergências ideológicas.

Mas, enfim, não gostei. Sei que deveria não ser tão simples assim, mas não gostei. Não gostei apesar de Sônia Braga, apesar de Kleber Mendonça; não gostei apesar das referências recifenses, musicais, afetivas, mnemônicas Não gostei apesar da convergência ideológica com o filme e seus realizadores. Não gostei, sei lá. Poderia dizer que não gostei por conta do roteiro e da narrativa um tanto maniqueísta, apesar de burguesa. Porque tanto a jornalista Clara (Sônia Braga) e seus antagonistas ambiciosos do setor imobiliário, que querem por querem desalojá-la do antigo edifício Aquários onde mora na praia de Boa Viagem, para construir mais um “mega espigão, são ambos burgueses; e parece que assistimos na tela uma guerra travada entre maus e bons burgueses, entre mocinhos e bandidos. A causa de Clara passa ao largo de preocupações sociais e de igualdade de classe, e os pobres retratados no filme apenas parecem querer, algumas vezes, constranger a classe média de Boa Viagem, como, por exemplo, na cena em que um grupo risível de moradores daquele bairro está fazendo um exercício de respiração e gargalhadas, à beira mar, e alguns meninos de rua, negros e de cabelos oxigenados ali adentra. Ouvimos, então, a voz do animador dos exercícios dizendo para todos ficarem tranquilos e aceitarem a qualquer um sem preconceito (confesso que torci para que fossem assaltantes e aterrorizassem aquele grupo de velhinhos classe média); ou na postura humilde e subserviente da empregada de Clara, sempre com voz e cabeça abaixada, e com direito até a uma visita conciliatória da patroa, junto com o sobrinho e a namorada deste, para comemorar o aniversário da empregada, no bairro de Brasília Teimosa, o lado pobre da zona sul do Recife, marcado, conforme uma fala de Clara, por uma corrente de esgoto que separa a praia do Pina e Brasília Teimosa. Aqui e ali, além disso, são mostrados planos abertos belíssimos, em que ficam evidentes as contradições da zona sul do Recife; entre Boa Viagem, o Pina e a “favela” de Brasília Teimosa. E, para por aí a aparente preocupação social do filme. Por que, o que tem haver os miseráveis a os excluídos do Recife e do Brasil com a causa de Clara? Há ali, parece-me, um embate entre uma burguesia tradicionalista e intelectual do Recife e uma burguesia “moderna”, predatória no que diz respeito a fazer dinheiro, pouco se importando com as tradições e a história do bairro de Boa Viagem.

Mas, não é exatamente isso o que me desagradou. Na verdade, nenhum mal há em um enredo centrado em uma senhora burguesa de meia idade, apreciadora de maconha e de garotos de programa e sua luta inglória contra ambiciosos e frios empresários do setor imobiliário, que colocam o dinheiro na frente das tradições e da memória dos antigos edifícios da zona sul do Recife. Talvez se tal narrativa se desenvolvesse de modo não tão maniqueísta, talvez se alguns desnecessários planos e sequências tivessem sido retirados da edição final do filme, tornando-o mais leve e menos enfadonho, talvez se o filme não tivesse sido tão falado e me criado uma expectativa tão grande, sei lá. Se talvez não fosse assim, eu tivesse gostado do filme.

Para complicar meu estado de espírito e meu constrangimento por não ter gostado do filme, foi exibido, antes do início da sessão, um trailer do filme brasileiro “Pequeno Segredo”, que foi o escolhido pela comissão do Ministério da Cultura para representar o Brasil na indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. E eu gostei. Perdoem-me, mas gostei do que vi no trailer. Foi mal.

PS. Para não deixar dúvidas, ou a falsa impressão de que se trata da crítica de um “coxinha”, endosso: FORA TEMER!

Marcio de Souza
Enviado por Marcio de Souza em 16/09/2016
Reeditado em 10/10/2016
Código do texto: T5763321
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