Análise literária do soneto - Nau à Deriva - de EDNA FRIGATO

"E Há tempos o encanto está ausente/ E há ferrugem nos sorrisos/ E só o acaso estende os braços/ A quem procura abrigo e proteção/ Meu amor (...)" (Renato Russo)

NAU À DERIVA

Perante o meu olhar a sepultura

Do encanto que em meu peito dolorido

Adoeceu, morreu de amor ferido

Condenando a alma minha a tal tortura

Devagar... como o sol foi se apagando

Tornando a minha vida negra agora

Espectro a vagar no mundo afora

Qual batel no oceano naufragando

Quando a saudade vã meus olhos molha

Desfolha imaculados sonhos pulcros

Que jazem sob a laje de um sepulcro

E à luz da cruel razão a alma olha

Suspensos entre escombros e quimeras

Restos mortis: magia de outras eras

EDNA FRIGATO

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Diversas Recepções vão significar seu poema na perspectiva do ultrarromantismo, do amor fracassado e da insuportável vivência em desamor. No entanto, esta Recepção propõe um contraponto: não há uma segunda pessoa explícita no poema, um interlocutor, a suposta pessoa amada, protagonista de toda a dor “de amor ferido” relatada pelo eu-lírico. Daí que há possibilidade também do sujeito-poético estar se referindo ao Amor em uma perspectiva universal e não particular, individual. Ou ainda que individual, não ao amor carnal entre duas pessoas, mas ao amor materno, fraterno ou entre amigos. Porém, não há como negar a presença marcante do subjetivismo no texto (característica tão comum tanto na escola romântica quanto na simbolista) explicitada pelos registros enfáticos dos pronomes possessivos em primeira pessoa do discurso. É personalíssimo sim o relato poético frigatiano, mas é personalíssimo o desabafo intimista (e até pessimista) de um eu-lírico-personagem que, possivelmente, nada tem a ver com a poetisa que assina embaixo esta verdadeira obra de Arte Literária.

Na primeira estrofe, o eu-lírico, munido com um arsenal de metáforas e personificações, confessa ver seu encanto morrer (sepultado) na dor de seu peito depois que adoeceu devido ao amor ferido. Na segunda estrofe, nos dois primeiros versos, outra característica romântica: numa comparação metafórica, a Natureza acompanha o estado de espírito do sujeito-poético: “Devagar... como o sol vai se apagando / Tornando a minha vida negra agora” – o sol significando a felicidade e o cenário noturno, a tristeza. Ainda na segunda estrofe, a metáfora-síntese do soneto decassílabo: “Espectro a vagar no mundo afora / Qual batel no oceano naufragando”. Tal alegoria é remetente do título do soneto ao seu conteúdo e estabelece belas imagens poéticas ao comparar o estado de solidão depressivo-gótico do eu-lírico com um barco isolado no meio do oceano, afundando lentamente.

Na terceira e na quarta estrofe, o eu-lírico vai ressaltar “a saudade vã” de um Amor de outrora cujos sonhos imaculados foram desfeitos simultâneos ao pranto que os reclama. Tal imagem testemunhada, por seus olhos poéticos, confirma a morte desse Amor (já mencionada na primeira estrofe) que se apresenta agora num cenário caótico entre os escombros da racionalidade real e cruel e a ilusão das utopias líquidas, abstratas e efêmeras. Os dois últimos versos encerram o impactante poema determinando a infelicidade do eu-lírico como sendo uma sina, um carma que o persegue desde outras encarnações: “Suspensos entre escombros e quimeras / Restos mortis: magia de outras eras”. A referência ao plano espiritual e a morte como cura para a dor de viver são também características românticas ratificadas pela Escola simbolista.

Todo o conteúdo filosófico de “Nau à Deriva” dialoga com os postulados de Arthur Schopenhauer numa convergência epistemológica conclusiva: viver e se aventurar no Amor é determinantemente trágico. Ratifica esse consenso filosófico a epígrafe do soneto cujo adendo poético de nosso legionário Renato Russo é a cereja nesse bolo literário de Edna Frigato. Percebe-se ainda em “Nau à Deriva”, um movimento estratificado em fases, narrado pelo eu-lírico: a primeira fase exofórica e as outras duas fases endofóricas. Exofórica porque o poema não, literalmente, narra “o como” e nem “o porquê” desse “amor ferido” ter morrido. O texto já começa com esse Amor póstumo. A segunda fase é a lamentação por um Amor ferido/moribundo com a saudade das promessas e sonhos dele em vida. A terceira fase é o “descanso” desse Amor fracassado que se repetiu em “outras eras”.

Friedrich Hegel defende que esse movimento vida-amor-fracasso-morte explica, grosso modo, as etapas da vida: sair de casa; aventurar-se; se machucar; e a volta para casa. Isso se assemelha muito à infância - adolescência/juventude - fase adulta - velhice. Portanto, a filosofia hegeliana enfatiza muito esse retorno para a Casa (significando Segurança/Conforto) como uma necessidade natural, humana. No entanto, no soneto frigatiano, o retorno para a Casa é simbolizado pela morte (descanso para uma vida de infortúnios). Com mais um esplêndido soneto decassílabo, Edna Frigato contribui, novamente, para o enriquecimento filosófico e poético tão producente não só para o Recanto das Letras mais também para a nossa Literatura Brasileira. Parabéns, surpreendente Poetisa! Até mais ler!

Por RENATO PASSOS DE BARROS em 03/09/2016

RENATO PASSOS DE BARROS
Enviado por RENATO PASSOS DE BARROS em 16/09/2016
Reeditado em 29/10/2016
Código do texto: T5762963
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