O RETRATO DE CECÍLIA MEIRELES:
BREVE ANÁLISE ESTILÍSTICA


 
Retrato
 
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
 
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
 
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

 
 
     Cecília Meireles se utiliza da sequência: pronome reto, verbo, pronome demonstrativo, substantivo, adjetivo ou locução adjetivo - estes últimos dão ênfase aos substantivos: rosto, olhos, lábio, mãos, coração e face, elementos centrais do questionamento do eu-lírico.
         Os pronomes demonstrativos reforçam, como determinantes, os substantivos que serão questionados: este rosto, estes olhos, estas mãos, este coração. É interessante observar que o substantivo lábio é o único não determinado pelo pronome demonstrativo e ainda, curiosamente, aparece no singular, conforme comentaremos adiante.
     A conjunção coordenativa nem, em posição anafórica, reforça os substantivos olhos e lábio. Todo o texto está no pretérito. Podemos, aí, inferir a questão da temporalidade (as tramas tecidas entre o passado, o presente e o futuro), constatada pelo verbo mostrar, no presente do indicativo, (quarto verso da segunda estrofe): que nem se mostra.
     A predicação verbal predomina no poema, o que reforça a constatação do eu-lírico, com exceção dos dois últimos versos:  - Em que espelho ficou perdida/ a minha face? Ainda no último verso, o adjetivo perdida lembra que aquela face jovem e bela desapareceu e que jamais será encontrada. Nos sintagmas oracionais, prevalece a parataxe . Há uma preferência por sintagmas adjetivais (intensificador + adjetivo) tão paradas, tão simples, tão certa, tão fácil; assim calmo, assim triste, assim magro, o que dá ao poema um tom melancólico.
     A presença da anáfora, no terceiro e no quarto versos da primeira estrofe:  nem estes olhos tão vazios/nem o lábio amargo, realça a tristeza do eu-lírico diante da perda irreparável da juventude, sentimento reforçado pelos intensificadores tão e assim.
     O emprego dos demonstrativos: este, estas,esta, nos versos: Eu não tinha este rosto de hoje / Eu não tinha estas mãos sem força / Eu não dei por esta mudança[...] enfatizam a materialidade da única preocupação do sujeito: a velhice. Para realçar essa ideia, Cecília Meireles lança mão do polissíndeto e da gradação, com palavras do mesmo campo semântico, na segunda estrofe: tão paradas, e frias e mortas, referindo-se às mãos, símbolo de força, vigor e trabalho.
     No sintagma: nem o lábio amargo, o substantivo lábio, no singular, sugere a ausência de sorriso, a sisudez e a tristeza, como se os lábios estivessem cristalizados ou cerrados, dando a impressão de um só. Ainda nesse verso, o emprego do adjetivo amargo enfatiza o estado melancólico de um sujeito para quem a vida perdeu o encanto.
     O núcleo do sintagma verbal da oração: que nem se mostra, referindo-se ao sintagma nominal este coração, dá-nos a impressão de que o eu-lírico está vendo o próprio coração que já não ama, não tem mais emoções nem vontade de viver, caracterizando um estado de depressão profunda.
     No sintagma oracional: Eu não dei por esta mudança, o verbo dar tem a conotação de perceber, ou seja, o sujeito acusa-se de não ter sido capaz de perceber a marcha inexorável do tempo e que, ao longo dos anos, tal transformação era iminente. O sentimento de culpa é reforçado pela constatação dos sintagmas adjetivais: tão simples, tão certa, tão fácil.
     Nos dois últimos versos do poema, o eu-lírico desconhece como o seu aquele rosto envelhecido. Para dar ênfase a esse fato, a autora emprega apenas uma vez, em todo o texto, o pronome possessivo minha, ao indagar: Em que espelho ficou perdida a minha face? Vale observar o teor expressivo do substantivo face, simbolizando a beleza, o frescor, a juventude, em contraste com rosto que representa o cansaço e a velhice.
     A função emotiva é predominante no poema, tendo por objetivo ressaltar o estado emocional e espiritual do eu-lírico. Haja vista que todo o texto é centrado na primeira pessoa do singular.
O texto apresenta algumas rimas, duas das quais com anagrama (alteração na ordem dos fonemas): amargo/magro (imperfeito), mortas / mostra (perfeito) e uma rima toante, com as palavras fácil  / face.

     Prevalecem no poema os versos brancos ou soltos (sem rima), reforçando o sentimento de melancolia presente em todo o texto.
 
Bibliografia:
 
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1982.
MEIRELES, Cecília. Poesia completa. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
MONTEIRO, José Lemos. A Estilística. São Paulo: Ática, 1991.
MARTINS, Nilce Sant'Anna. Introdução à Estilística. 2ed. São Paulo: T.A.Queiroz, 1997.
Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 24/07/2016
Código do texto: T5708019
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