Análise das obras de Stephen King
Carrie, a estranha 
 
Carrie, a estranha foi o primeiro livro do escritor Stephen King a ser publicado, porém não foi o primeiro romance escrito pelo autor. Antes de Carrie, King havia escrito outros cinco livros, entre eles Fúria (1971) que foi publicado tempos depois. Carrie, assim como as outras primeiras obras do autor, é uma das mais carregadas de sua trajetória literária. São histórias cruas, inquietantes e pesadas. O próprio escritor refere-se a essa fase inicial de sua carreira literária como a mais instável emocionalmente o que resultou em obras realmente perturbadoras. Carrie – a estranha também foi adaptada para o cinema sob a direção de Brian de Palma em 1976, o filme conferiu à obra grande popularidade. Em 2013 foi lançado o remake de Carrie, a estranha, sob a direção de Kimberly Peirce, essa readaptação ganhou uma perspectiva cinematográfica nova o que a fez distanciar-se bastante da obra literária.

O enredo de Carrie à primeira vista pode ser simplório como acontece com grande parte das histórias criados por Stephen King que partem de fatos cotidianos e ganham dimensão sobrenatural à medida que aprofundamos nas mentes das personagens. Investigaremos os motivos que fizeram de Carrie um dos livros mais inquietantes do escritor e que rendeu a ele o reconhecimento como o mestre do horror (psicológico) moderno.

Carrie White é uma adolescente comum que sofre bastante na sua trajetória escolar. É uma garota tímida e introspectiva que vive cercada por humilhações por parte dos outros alunos da escola. O quadro apresentado inicialmente é corriqueiro: uma garota entrando na adolescência que está passando por um período conturbado em sua vida escolar. Temos compaixão por Carrie, o escritor consegue construir sua imagem de vítima de tal forma que nos compadecemos com o sofrimento da garota. Todas situações humilhantes por quais Carrie passa são retratadas de maneira cruel. As outras garotas da escola tratam Carrie como um animal exótico e a deixam acuada e sem possibilidade de defesa. Apenas a professora de educação física tenta ajudar Carrie, mas até mesmo a figura da professora denota que a estranha Carrie White é digna apenas de pena, não é capaz de lidar com sua própria estranheza.

O deslocamento social e a extrema incapacidade de se integrar ao meio fizeram de Carrie uma figura solitária e à margem de toda lógica das relações escolares. Ela não tem espaço entre os outros alunos e isso extrapola o quadro de bullying por qual a garota está passando. À medida que acompanhamos sua vida escolar notamos que Carrie não é apenas uma garota tímida, estranha e diferente, há algo a mais, algo que faz dela uma personagem totalmente impossibilitada de se reconhecer nas outras pessoas comuns. Carrie é incomum de uma maneira macabra, mesmo que seu comportamento seja passivo e submisso às humilhações, há algo nela que a torna assustadora, Stephen King vai deixando isso claro nas entrelinhas das reações e pensamentos de Carrie. Há algo muito errado com Carrie e a partir dessa constatação começamos a conjecturar o que essa garota pode ter de tão estranho?

A introdução de uma figura importante na história faz com que comecemos a compreender o que há por trás de Carrie, sua mãe, Margaret White é a chave para compreensão da personalidade de Carrie. Margaret White é um dos pilares que faz com que Carrie seja como é. Ela é a figura que irá padecer do que defini em outras análises da “Coisa Ruim”. É Margaret que introduz o aspecto insano na história, por ser uma mulher completamente fora da realidade aceitável. A mãe de Carrie é uma fanática religiosa do tipo mais assustador que há, ela acredita que Carrie é, literalmente, fruto do pecado, é a própria cria de Satã. O discurso de Margaret é tão assustador que sua presença na vida de Carrie se torna o motivo macabro que faz de Carrie uma garota muito estranha. Porém, não é apenas a criação extremamente violenta, rígida e fanática-religiosa da mãe que fazem de Carrie uma personagem perturbadora, o escritor introduz um elemento sobrenatural que faz da adolescente uma criatura quase surreal: a telecinese. A telecinsese é a capacidade psíquica de mover objetos com a força da mente. Carrie passa a descobrir esse poder à medida que sua fúria interna é desencadeada por acontecimentos externos relacionados a humilhações. A introdução da telecinese na história pode ser interpretada sob outro viés.

Carrie não dá sinais do seu poder até momentos de extremo estresse mental desencadeado pelas recorrentes humilhações no espaço escolar e em casa através das punições ilógicas da mãe. Esse poder vai aumentando de acordo com sua raiva ou descontentamento. Ao encararmos a telecinese como uma manifestação de um lado mental de Carrie que está adormecido podemos notar que é uma arma de defesa que ela possui contra o que está a afetando negativamente, em outras palavras, a telecinese de Carrie é a única forma que ela possui de combater o mal externo que a atinge e humilha. Durante toda história podemos perceber que a natureza de Carrie não é má, ela não é uma garota cruel pelo contrário é dócil, assustada e submissa, porém, quando está sob pressão e sendo humilhada desencadeia-se esse poder psíquico e ela passa a ser controlada pela telecinese. É como se o poder mental tomasse conta dela por completo e a partir daí Carrie se torna realmente cruel de uma maneira ensandecida. A questão é qual Carrie é real? A Carrie assustadiça e submissa ou a Carrie sob o efeito da telecinese? Há duas variações de personalidade na mesma pessoa, a história em si nos leva a pensar que Carrie foi afetada pelo meio externo, ela é levada a ser cruel porque as pessoas que a cercam foram cruéis com ela somado a isso está a criação de Margaret White que a tornou uma criatura totalmente alheia ao mundo das pessoas reais.

Em dados momentos Margaret White grita que Carrie é a filha de Satã, principalmente após as manifestações de seu poder. Essa perspectiva também pode ser levada em conta, a telecinese de Carrie é uma manifestação do mal? Ela também é vítima da “Coisa Ruim”, pois, ao exercer seu poder mental Carrie se transforma. Toda a história do livro vai nos levando no clímax, no ponto alto do uso do poder da garota: o baile do colégio. É como se Stephen King tivesse escrito toda história para que culminasse nesse acontecimento assombroso. É no baile da escola, quando Carrie alcançar o nível máximo de sua raiva, frustração e descontentamento que conhecemos a personagem em seu esplendor macabro. É no baile do colégio que se concentra o horror da história. As cenas construídas pelo autor são recheadas de carnificina e pânico. Carrie acredita ingenuamente que é a rainha do baile, de fato Carrie foi levada a criar ilusões sobre a possibilidade de sua inserção no meio escolar, ela realmente acreditou que poderia fazer parte daquele mundo, pois foi convidada para o baile pelo garoto esportista mais bonito da escola e foi eleita a rainha do baile, as ilusões de Carrie potencializaram sua raiva, tudo isso não passou de mais uma brincadeira dos alunos, mais um ato de zombaria e foi o último ato de humilhação pelo qual Carrie passaria passivamente. O desfecho do baile se dá com Carrie sendo banhada no palco com um balde contendo sangue e vísceras de porcos. Essa cena gera tanta tensão no leitor que sabe sobre o poder de Carrie que é quase de tirar o fôlego os fatos que passam a acontecer após o banho de sangue em Carrie. A garota entra em um transe psíquico, a raiva da humilhação a cobre por completo e a partir de então a telecinese guia todos seus atos. Carrie tranca todos convidados no salão do baile e começa seu show de horror, ela mata todas as pessoas com o poder da sua mente.

O mais assustador vem depois que Carrie deixa o salão com todas pessoas que zombaram dela mortas, despedaçadas e queimadas. Ela caminha para casa ainda sonâmbula com a mente cheia de pensamentos desconexos e macabros, em casa ela enfrenta sua maior inimiga, a mãe. Esse embate é recheado de clamores religiosos por parte da mãe que se encontra tão enlouquecida quanto Carrie, mas sua loucura habita nas suas crenças religiosas enquanto que Carrie está possessa pela raiva. Ela mata a mãe de uma maneira dolorosa e simbólica, a mãe é espetada completamente por facas e tesouras na cozinha e seu corpo fica pendido como se tivesse sido crucificado.

O desfecho da história culmina na morte de Carrie, o que nos leva a sentir alívio, pois, sua existência é mostrada de uma maneira tão amaldiçoada e infeliz que a morte parece ser o melhor fim para Carrie, a estranha. Ela encontra a paz na morte. Seu poder psíquico, portanto, pode ser encarado metaforicamente como sua única forma de lutar contra um mundo do qual ela não faz parte e que a oprimiu e ridicularizou. A mensagem é ao mesmo tempo assustadora e edificante, pois, através da figura de Carrie White o escritor nos mostra que é possível lutar contra aquilo que nos deixa enfraquecidos e acuados, mas também mostra que dependendo da forma que lidamos com as más circunstâncias em que somos envolvidos podemos despertar o pior que há  em nós e essa linha é tênue entre o bem e o mal que há dentro da mente de cada pessoa.

 O livro é um ataque contra aqueles que encontram prazer em ridicularizar o outro, em submeter o outro aos seus caprichos egocêntricos de humilhar e zombar. É inevitável, até certo ponto torcemos por Carrie e nos regozijamos com o despertar de sua vingança, é como pensar que as pessoas mortas pediram por isso a cada momento que ridicularizaram e humilharam cruelmente a protagonista, o que é algo completamente inquietante: torcer pelo mal que há na história. Stephen King consegue fazer isso com muita criatividade, despertar em nós o pior que podemos ser através de personagens como Carrie, a estranha, e é por isso, talvez, que a história seja tão perturbadora e tenha lhe rendido tamanha popularidade.

 
Larissa Prado
Enviado por Larissa Prado em 17/05/2016
Reeditado em 17/05/2016
Código do texto: T5638261
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