Capitães da Areia: uma canção da liberdade

Jorge Amado é um escritor baiano nascido em 1912, iniciou na imprensa de Salvador aos catorze anos, como repórter policial. Seu primeiro livro foi publicado em 1931, O país do carnaval, alcançando pouco sucesso, que se tornou mais acentuado apenas com a publicação do livro Jubiabá, em 1935. O autor é um dos mais lidos fora do Brasil, tendo suas obras traduzidas para quarenta e nove idiomas, levando os cenários e a cultura brasileira para o mundo através de seus livros. Foi militante comunista, tendo sido eleito deputado federal em São Paulo pelo PCB, e exilado na Argentina e França na década de 1940. A militância foi percebida em seus livros, em especial na fase mais social de sua atuação como escritor. Sua obra é identificada com a segunda geração modernista, demonstrando uma preocupação social, que refletia o cenário sócio-político do período.

Capitães da Areia, publicado em 1937, é o sexto romance do escritor, é dividido em vinte e sete capítulos curtos, precedidos por pseudo-reportagens do Jornal da Tarde, os capítulos são distribuídos em três partes: Sob a lua num velho trapiche abandonado, em que é apresentada a ambientação da narrativa, a caracterização dos personagens principais e as primeiras aventuras dos capitães da areia; Noite da grande paz, da grande paz dos teus olhos, marcado pela presença de Dora em meio ao grupo de meninos abandonados; Canção da Bahia, canção da liberdade, contendo capítulos que traçam os destinos dos meninos do bando, passados já quatro anos na vida dos personagens.

Na obra é retratada a vida de crianças abandonadas em meio a cidade de Salvador na década de 1930, juntas elas formam o grupo Capitães da Areia, que é regido por uma moral própria e liderado por um garoto de 15 anos, conhecido como Pedro Bala. No decorrer da narrativa retrata-se o abandono, a carência dos meninos de rua, que possuem como únicas alternativas para a sua sobrevivência o roubo e outros delitos. Cada jovem possui uma história de vida marcada pela violência, que suscitam o ódio, o desejo de vingança, o anseio por mudanças e melhores condições de vida para os pobres, como eles, e a valorização da liberdade do Trapiche, local onde eles viviam.

Os líderes do bando, e personagens que levam o leitor a reconhecer a perversidade com que a população trata aos meninos de rua, são: Pedro Bala, Dora, Professor, Sem-Pernas, Gato, João Grande, Volta Seca e Pirulito, todos possuindo uma história de vida diferente, mas unidos pelo abandono. Os únicos amigos dos Capitães da Areia são o padre, com ideias comunistas, chamado José Pedro, e Don’Aninha. Conforme Eduardo de Assis Duarte (1995), “Não é um livro de vanguarda modernista. A importância da obra é de natureza política. Trata-se de um livro politicamente revolucionário para a época.” É a primeira vez que meninos de rua são apresentados como protagonistas, mais do que pelo rigor estético, o tom político é o que sobressai, e a denúncia social foi motivo de escândalo no período de publicação.

A crítica contra a Igreja Católica elitista, contra os Reformatórios que perpetuavam a violência e a hipocrisia da população no tratamento com os jovens é recorrente na narrativa, os meninos de rua são temidos na cidade, ao mesmo tempo em que temem a maldade e o preconceito das pessoas nas ruas. Todos os garotos são crianças apenas na idade, vivendo com atitudes de homens, conhecendo os segredos do sexo, promovendo furtos e diversos delitos como adultos. Além disso, são procurados pela polícia e torturados como homens, Sem-Pernas, menino cocho tido como um dos mais cruéis do grupo, carrega o ódio pelas autoridades e tem pesadelos frequentes com os escárnios e humilhação que sofreu quando foi pego pela polícia, antes de se tornar um capitão da areia.

No entanto, apesar das atitudes de homem, um dos capítulos mais comoventes da narrativa, “As luzes do carrossel”, mostra que, no fundo, todos não passavam de crianças, a emoção ao ver as luzes do velho brinquedo piscando em meio a escuridão da noite e a música tocando dando vida à cidade, demonstrava o sentimento de alegria que os consumia: “Naquele momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora tinham o carinho e o conforto da música”. (AMADO, 2004, p. 59) Conforme Milton Hatoum:

A brincadeira no carrossel é uma pausa na vida arriscada e marginal, uma entrega à magia e ao sonho da infância. A música – ‘uma valsa velha e triste, já esquecida por todos os homens da cidade’ – tem o poder de irmanar as crianças e de devolver a elas um pouco de alegria. Ao mesmo tempo é uma possibilidade de conquistar a liberdade, ainda que provisória. (HATOUM s/d)

São raros na narrativa esses momentos em que se entrevê a graça infantil dos capitães, mas são eles que promovem o aspecto comovente da história e a empatia para com os personagens. É também neste capítulo que pode ser reconhecido o olhar que o padre José Pedro oferece a esses meninos, para ele, eram crianças e deviam ser recuperadas e tratadas com dignidade, no entanto, aproximar-se delas demandava cuidado e paciência, mas, no fim, não passavam de crianças. O modo afável do padre destoava da forma como a Igreja os via, mas retrata o lado humilde e acolhedor da Igreja, tão em falta naquele momento.

Outro capítulo que marca a primeira parte do romance, “Família”, narra a tristeza do abandono e a carência dessas crianças. Nele percebe-se que o grupo possui uma moral própria que deve ser seguida pelos garotos, uma vez que se propõem a entrar nele, Sem-Pernas é escolhido para reconhecer o ambiente e facilitar o furto na casa de uma família rica. O garoto, pela primeira vez, é bem recebido e tratado como um filho, por poucos dias quase se esquece da tortura que sofreu com os policiais, e acostuma-se com o tratamento que lhe é oferecido por um casal que havia perdido um filho há pouco tempo, e que reconhecia em Sem-Pernas uma espécie de substituto. É um dos poucos momentos do texto em que o personagem mostra o lado mais ameno de sua personalidade.

O desfecho da primeira parte do romance retrata também a epidemia de varíola na cidade, que acaba vitimado um dos membros do grupo. O padre é um dos personagens centrais deste capítulo. Acobertando os planos dos garotos e afastando as autoridades do Trapiche, possui receios quanto à forma de ajudar os meninos e a distância que separa o seu modo de agir do modo recomendado pela Igreja, fazendo-o temer pelo próprio futuro. O narrador deixa claro que o padre José Pedro jamais foi um bom aluno no seminário, ele é apenas um homem corajoso e bom, que sentiu o chamado de Deus e procurava redimir aqueles jovens, tendo como uma das poucas conquistas, a vocação religiosa de Pirulito.

Na segunda parte do romance, os capitães da areia têm agora a companhia de Dora, uma menina de 13 anos, que perdeu os pais para a varíola. A narração do abandono social da personagem promove a denúncia contra a falta de sensibilidade da população; como a epidemia atingia a cidade, ninguém se propôs a oferecer um trabalho à jovem, que se viu obrigado a se unir ao grupo no trapiche. Dora torna-se mãe e irmã dos meninos do bando, bem como uma noiva para Pedro Bala, conquistando o respeito de todos por conta de sua coragem.

Mas, além da entrada de Dora na história, a segunda parte do romance é marcada pela apreensão de Pedro Bala no reformatório e da menina no orfanato. Aquilo que já havia sido comentado nas reportagens que precederam os capítulos é confirmado na narrativa. O garoto sofre maus-tratos, foi trancado na cafua durante dias, local que associou com o inferno. Neste capítulo Jorge Amado promove a denúncia contra as instituições deste tipo, e a reflexão quanto ao modo como funcionam como medida para ressocialização dos jovens. A ausência de família e escola, a vida em ambientes degradantes, entre tantos outros motivos que levaram esses jovens às ruas, continuam até hoje, tornando a crítica do autor ainda muito atual.

Na terceira parte, enfim, narra-se o destino dos jovens, já previsto no decorrer do romance, em que se pode notar o talento de cada um dos garotos. Professor torna-se pintor e sai do grupo por não suportar a ausência de Dora, que morre ardendo em febre, Gato vira um malandro nas ruas de Ilhéus, Pirulito segue a vocação religiosa, João Grande torna-se marinheiro, Volta Seca entra para o bando de Lampião, seu padrinho, matando mais de sessenta policiais, Sem-Pernas suicida-se para não ser pego novamente pelas autoridades, vinga-se ao não dar esse gosto aos policiais, livrando-se das humilhações. Pedro Bala segue os passos de seu falecido pai, tornando-se um líder político em manifestações grevistas, atendendo também à consciência social que cresce após seu relacionamento com Dora.

Capitães da Areia é, assim, a ficcionalização de uma época marcada pelos desejos de mudança no país. Sob a ditadura de Getúlio de Vargas e os anseios por melhorias na qualidade de vida da população, Jorge Amado constrói a história dos moradores do trapiche. Para tornar mais verossímil, o autor teria passado um período convivendo com os jovens moradores de rua, de forma a compreender melhor suas vidas. Hatoum indica que “Mais de setenta anos depois da primeira edição, Capitães da Areia continua a ser lido não apenas como um registro social de uma época e de um lugar específico, mas também como uma obra literária que habilmente soube evocar um drama humano que ainda perdura.” (HATOUN, s/d) Desse modo, mais do que romantizar e transformar meninos de rua em heróis, Jorge Amado soube evocar situações e sentimentos que ainda se mostram como objetos de discussão.

A obra marca um período importante da produção literária de Jorge Amado, sendo um romance urbano, leva o leitor a conhecer os becos e vielas das ruas de Salvador, os terreiros do candomblé, as instituições sociais de apoio ao governo, ao passo que promove a reflexão acerca da desigualdade social e a realidade opressora, que se abate sobre os mais de cem meninos que formam os capitães da areia. Denuncia, ainda, a violência e a escolha dos jovens por uma vida de crimes, em nome da sobrevivência. Ao final da leitura, sobressai a comoção após conhecer a história das crianças da cidade da Bahia e do país inteiro. A linguagem simples e ágil do autor torna a leitura fácil, o que não atenua os momentos dramáticos que são narrados, que acabam atingindo mais diretamente os leitores.

REFERÊNCIAS:

DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia, Rio de Janeiro, Record, 1995.

HATOUM, Milton. Capitães de areia, posfácio. Disponível em: <http://www.miltonhatoum.com.br/do-autor/ensaios-criticas/capitaes-de-areia-posfacio>. Acesso em: 26 fev. 2016.

Jéssica Catharine
Enviado por Jéssica Catharine em 06/03/2016
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