“(...) a gente só compreende a viagem quando regressa. ” (O regresso: a última viagem de Rimbaud / Lúcia Bettencourt – 1ª ed. – Ed. Rocco, 2015)
 
Rimbaud sempre esteve presente na minha jornada acadêmica, desde antes da faculdade de Letras, até os tempos mais maduros. Tempos em que me aventurava na leitura das edições francesas de "
Une saison em enfer” e ”Iluminations”.  Só depois, pude conhecer as incomparáveis traduções de Ivo Barroso. Quando soube do livro de Lucia Bettencourt, logo vi uma boa oportunidade para revisitar o amigo imaterial que fiz ao longo da vida.
 
Romances biográficos, já li muitos. No entanto, o que a Lúcia nos apresenta em “O Regresso – a última viagem de Rimbaud” (Ed. Rocco: 2015), é um relato que nos provoca a intrigante impressão de ter sido psicografado. Nas 191 páginas, entre a alternância das vozes narrativas, erguem-se os cenários e os passos que nos empurram pelas trilhas por onde seguiu o homem das sandálias de vento. Restaura-se a mente faminta de insaciável libertação. Lado a lado com aquele que chamavam de “jovem Shakespeare”, de “maldito”, percorremos toda a densidade poética e contraditória que fez seu enigma. Com seu livro, a autora promove o milagre da ressurreição.
 
Lúcia Bettencourt pinta com tintas quase impressionistas um Rimbaud indomado, possuído por uma incurável melancolia, por uma recusa à felicidade. É na escolha da construção do texto, no uso da palavra exata, que este romance encarna a tristeza do poeta, encontra sua face selvagem, o viajante febril, um rebelde condenado. É na composição refinada das frases que vemos a ponta de um raro entusiasmo que Arthur encontra em Áden e em Harrar, isolando-se no oriente e nos confins da África, atravessando desertos sob o sol das cores que queimam.
 
Cada página nos faz sentir o nômade incontido, o eterno enfant terrible que não quer a parada final, quer ir em frente, desbravar e nunca se descobrir. Ítaca é a miragem da qual ele foge. É o retorno ao fim e não ao começo. Recordo-me de uma carta que Rimbaud escreve de Áden, onde ele revela a inquietude inata.
 
Há seis semanas estou aqui sem trabalho e faz um calor absolutamente intolerável. Mas enfim, é claro que não vim aqui para ser feliz”.
 
Prossegue:
 
“(...) se eu tivesse meios para viajar sem ser forçado a trabalhar, ninguém me veria mais de dois meses em um mesmo lugar. Enfim, o mais provável é que sempre acabemos onde não queríamos ir, fazendo o que não gostaríamos de fazer. Vivendo e morrendo de maneira totalmente diferente do que queríamos, sem esperanças de nenhuma espécie de compensação” (Correspondência de Rimbaud – L&PM Editores, 2ª Ed: 1991).
 
Quando falo em Rimbaud, a memória me faz buscar, como que por instinto, outros dois personagens que foram seus contemporâneos, dois náufragos do mesmo período histórico: Van Gogh e Gauguin.
 
Tanto Rimbaud, como Van Gogh e Gauguin testemunharam a França da Comuna de Paris, da utopia proletária devastada com crueldade. Os três viveram sob aquela égide ideológica que exigia a quebra dos grilhões, o controle das rédeas da liberdade e do próprio destino. Três náufragos, três nômades, três caminhos que convergem para o trágico.
 
Lendo o romance de Lúcia, confirmo uma teoria que internalizei em mim. Rimbaud é uma história feita somente de introdução e epílogo. A parte das suas viagens sempre serão nebulosas; os motivos da fuga, intraduzíveis. No entanto, a autora consegue criar um mosaico que se move e nos ajuda a pressentir as razões indevassáveis do poeta.
 
“Ulisses naufraga, ao regressar. E é então que começa seu poema. Falta pouco para a sua história terminar. ” (Pág. 50)
 
É provável que Rimbaud, um ateu orgulhoso, jamais pudesse ter imaginado tal redenção. O corpo aleijado continuava a ser carcomido sem trégua pela doença. As dores e as alucinações, causadas pelo consolo do láudano, iam consumindo o que restava da sua dignidade. Convencido pela irmã, entrega-se ao seu maior paradoxo: a fé.
 
“Devorado de febre, cansado de lutar contra as dores e sentindo-se cada vez mais fraco e anêmico, já não lhe fazia mais diferença. Deus, na hora da morte, é a abstração que nos liberta da nossa concretude. ” (Pág. 174)
 
O personagem que nunca quis se encontrar, que nunca desejou ancorar definitivamente em porto algum, precisou abraçar-se à imagem de um Deus. Com isso, Rimbaud antecipou a própria morte, quando se viu impelido a sucumbir a tudo em que nunca quis acreditar. O corpo foi o carrasco do espírito e é com a sensibilidade aflorada de escritora experiente que Lúcia Bettencourt descortina o drama do último ato.

“Os versos eram a plataforma onde os grandes poetas se lançavam no desconhecido. ”  (Pág.25)
 
A última viagem de Rimbaud” ultrapassa a tentativa de uma original reinterpretação biográfica do poeta. Lúcia Bettencourt nos proporciona o reencontro com a poesia do inconformado que abandonou o esconderijo dos versos para saciar a sede pelo imprevisível, para abrandar o vazio implacável que atormenta todos os gênios que buscam sentido em existir. Rimbaud encontrou seu abismo e se jogou...

Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 05/11/2015
Reeditado em 05/11/2015
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