O historiador do futuro

Tempos atrás, quando liguei o computador pela manhã apareceu na tela mensagem escrita, bem estranha, porque não estava associada a nenhum aplicativo do PC. Era apenas um texto na tela escura. Transcrevo a mensagem:

"Caro amigo, você não me conhece, escolhi você ao acaso para ser meu amigo e me ajudar com umas pesquisas que estou fazendo. Nós aqui temos dificuldade para recuperar determinados conhecimentos, já que quase tudo foi destruído na grande catástrofe de 4.553. Sobreviveram parcialmente algumas bibliotecas, e uma quantidade ainda desconhecida de arquivos digitais, de pouca utilidade pois os equipamentos necessários para recupera-los são escassos e não temos como fabrica-los."

"Estamos reconstruindo a civilização no planeta Terra, na medida do possível. Alguns recursos felizmente ainda dispomos, como a comunicação eletrônica com fontes do passado, mas isso também tem graves limitações, em consequência da GC. Não é sempre que o contato dá certo, por isso peço encarecidamente que não deixe de responder, se esta mensagem acaso chegou até você. Dario."

Sou um tipo crédulo, fiquei emocionado e minha mente foi a 10 mil por hora imaginando quantas coisas interessantes eu poderia mandar para o futuro. Que missão de vida pode haver mais grandiosa do que contribuir para a reconstrução de um planeta inteiro, aproveitando para evitar erros tais como os crimes contra a humanidade? E, se em troca eu conseguisse algum conhecimento precioso do futuro? Fiquei até o dia seguinte sem pregar os olhos, atarantado, pensando em como responder. Não sabia por onde começar, pois tudo o que já vi na vida estava ali, na minha cabeça, ao mesmo tempo, pedindo a vez para ser lembrado.

Quando finalmente sucumbi ao sono, dormi umas quinze horas seguidas, profundamente, e acordei mais sereno. Foi aí que "caiu a ficha": só pode ser uma brincadeira, um trote, algum conhecido tentando zoar comigo. Receber um contato do futuro? Onde se viu uma coisa dessas, logo comigo? Seria muito mais que o cúmulo da coincidência, mais improvável que acertar a Mega-Sena sozinho duas vezes seguidas.

Mas... resolvi entrar na brincadeira, ver o que podia acontecer. Vá que é verdade, alguém do futuro, que vai viver daqui a 2.500 anos, fez contato comigo e pediu ajuda para nada menos que RECONSTRUIR A CIVILIZAÇÃO NO PLANETA TERRA destruída por uma catástrofe. Vamos lá, não há nada a perder.

Respondi:

"Caro Dario, terei o maior prazer em colaborar, mas você terá que entender minhas limitações, pois não sou pessoa de posses e também não sou especialista em nada. Você vai pedindo o que deseja que eu vou mandando na medida do possível. Só preciso ter certeza de que você não é um alienígena buscando informações para atacar nosso planeta..."

Não cheguei a postar o texto, a resposta apareceu imediatamente no monitor do meu PC:

"Fico grato e imagino suas limitações, que tentarei respeitar. Quanto à minha origem terráquea você terá que confiar, só posso dizer que se fosse um alienígena com poder suficiente para atacar um planeta teria também condições de planejar o ataque sem depender de uma pessoa comum do século XXI - com todo respeito. Vamos em frente... "

E assim começamos nossa troca de informações e de impressões, horas e horas a fio, dia após dia. Eu quase não fazia outra coisa, e quando alguém me perguntava eu dizia que estava escrevendo um romance.

Os principais interesses de Dario eram as religiões e as artes em geral, mas principalmente a música. Ele perguntava, eu pesquisava na internet e mandava gigabytes de arquivos de texto, imagens e áudios. Aprendi muita coisa, pois tinha que ler um pouco de cada coisa, pra saber o que estava enviando a Dario.

Dario era insaciável, processava tudo em segundos, eu não dava conta de atender tudo o que me era solicitado. Quando falei do meu espanto pelo que estava ocorrendo, ele me contou que um colega seu, certa vez, recebeu um lote digital de doze petabytes, de um correspondente do ano de 2.157. "O coitado precisou de dois meses para ler tudo", disse-me Dario.

"Doze mil terabyts de textos, imagens, áudios e sabe lá o que mais, deve ser tudo que vai existir de informação digitalizada daqui a 130 anos. Deve ter tudo até sobre viagens interplanetárias. O que mais está faltando vocês saberem?" - falei.

"Não é bem assim. O conhecimento propriamente dito daquele ano ocuparia no máximo alguns terabytes para codificar. A quantidade de informação daquele lote consistia na verdade em registros do cotidiano mundial, desde históricos pessoais, conversas gravadas, fotos de aniversário de crianças, registros contábeis minuciosos das empresas, imagens e dados dos satélites do trânsito de veículos de toda espécie e assim por diante. O que estou pedindo a você é algo que não se encontra em arquivos de computador. Neles tem informação, mas não tem sabedoria. Percebe o que eu digo? Eu preciso entender certas coisas que conheço e até sinto, com sentimentos derivados do processamento de experiências, mas me falta a conexão segura com as raízes do Cosmo. Percebe? Eu ouço muita música, meu corpo inteiro reage aos sons, a melhor música é aquela que me deixa completamente harmonizado, tudo começa a funcionar melhor em mim, meus pensamentos parecem mudar para outra região do Universo, onde reina uma paz desconhecida, e lá eu fico confuso, porque não sei o que é essa outra realidade, como ela se conecta ao meu mundo, o que posso esperar, amar ou temer. Lá, a beleza é absoluta, mas não está associada a qualquer objeto. Não só a beleza, mas qualquer tipo de atributo é absoluto e não está relacionado a nada em particular, porque lá não tem mais nada, apenas os atributos em forma abstrata. Ouvindo certas músicas o próprio pensamento pára de fluir, e eu preciso saber o que é aquele mundo repleto de sensações maravilhosas, uma espécie de universo paralelo vazio de sentido. Acredito que minha pessoa será completamente humana apenas quando eu decifrar esses misterios, essas coisas que não estão escritas em lugar nenhum, talvez porque seja impossível escreve-las."

oooooooooooooooooooooooooooooo

Conversa vai, conversa vem, perguntei:

"Como você consegue se comunicar comigo? Como é sua tecnologia?"

Dario respondeu, com sua velocidade mais do que instantânea:

"Temos algumas máquinas que emitem feixes de táquions codificados sem deslocamento no espaço. As partículas afetam de um modo ainda desconhecido o supremo substrato universal, aquilo que dá "corpo e forma" às energias cósmicas mais sutis, inclusive aos próprios táquions. Acho que vocês chamavam de mônada, demiurgo, nomes assim, acreditando que este supremo substrato contém a inteligência cósmica em estado latente. É justamente isto que estou pesquisando no momento. As mensagens dos táquions viajam bilhões de anos ao passado, nunca ao futuro, porque o futuro delas (das mensagens) ainda não existe. Sem deslocamento no espaço, as mensagens encontram tudo o que já esteve naquele exato ponto do universo, ancorado em alguma densidade cósmica, neste caso o nosso querido planeta, e o que eu enviei bateu exatamente no teu computador, porque a minha máquina e a tua estão exatamente nas mesmas coordenadas geodésicas. Confira: 27°11'43"S 49°47'33"W altitude 353m".

Abri uma aba do navegador, acessei o Google Earth, marquei o telhado de minha casa, olhei as coordenadas no canto direito inferior da tela, fiquei arrepiado: batia certinho.

Como estava cansado de tanto conversar com meu amigo ultraveloz do futuro, resolvi fazer uma pausa. Fui até a cozinha beber água, não resisti à tentação e desfalquei o pote de sorvete. Liguei a tv, respirei fundo, tentei centrar o pensamento em mim mesmo. Estava esgotado, saí pra caminhar sem rumo pelo bairro. O sol das 17 horas lançava sobre as fachadas das casas e as copas da árvores uma luz dourada, eu sentia a emoção de viver num mundo belíssimo que haveria de ser destruído dentro de menos que três milênios.

Meu passeio era uma espécie de epifania, mas meu cérebro não conseguiu desplugar-se do big-bang pessoal: acabava de ter uma boa ideia. Corri de volta para casa, sentei no computador e escrevi:

"Caro Daniel, tive uma ideia, acho que você vai gostar. Tua máquina se comunica com minha máquina porque as duas estão ancoradas no mesmo espaço. Minha máquina está on-line com a internet (depois eu explico, se precisar) e através dela você pode puxar qualquer informação da Rede Mundial de Computadores. Tudo o que você precisa está lá, sem que eu precise ajudar. Bem, quase tudo, ou bastante coisa, ou melhor, quase tudo o que temos em nossa época. Infelizmente meu pobre PC é por demais limitado, você vai levar anos pra puxar tudo o que pretende conhecer. Seria interessante conectar tua máquina com uma bem potente do meu tempo, por exemplo o computador de uma universidade. Tenho amigos na U..., vou falar com eles. Eu consigo as coordenadas, você transporta a sua máquina até o lugar certo, e com sorte tudo vai andar bem mais rápido para você."

Peguei o celular, fiz contato com Leandro Marcelo pelo zapp.

- Olá, quanto tempo! etc. etc.

Fui ao ponto, expliquei a situação, pedi que ele me desse as coordenadas geodésicas exatas do computador que ele usa na universidade. Ele custou entender, se é que entendeu, disse que andava ocupado, noutro dia voltaria a falar comigo, se despediu. Fiquei chateado e mandei pra ele:

"Cara, deixa de ser murrinha, você me deve pelo menos um pouco de atenção. Estou falando sério, me ajuda, senão vai ser a segunda vez que vc me deixa na mão. Isso não é coisa de amigo."

A resposta de Leandro Marcelo veio rápida, na forma de um pequeno desenho: um punho fechado com o dedo médio em riste.

Filho da ...

ooooooooooooooooooooooooooooo

Conversei muita coisa com Dario, não é o caso de reproduzir aqui tudo o que falamos. Deixo margem para a sua imaginação de leitor. Acho que o melhor é resumir o conteúdo dos diálogos que mais me emocionaram, e vou começar pela conversa sobre jardinagem.

Dario disse que estão tentando reconstruir a civilização humana do planeta Terra, no ano de 4.553, e que já tinham reconstruído parcialmente algumas cidades. Escrevi:

"Aproveitem e construam tudo do jeito certo. Não esqueçam de ajardinar tudo, bem bonito."

Explico minha preocupação: eu, M A Mondini, tenho pra mim que a humanidade deve evoluir na direção da simplicidade. Não será preciso abrir mão da tecnologia, mas poderemos usar apenas o que nos facilita o cotidiano sem amolecer nossos corpos, sem gerar conflitos e sofrimentos desnecessários, e sem gerar estruturas sociais tão complexas a ponto de virar o foco da vida para o umbigo da máquina chamada civilização. Para mim, a jardinagem é a atividade que mais nos aproxima do ideal da vida contemplativa. É um atalho para a espiritualidade.

Sabe o que Dario respondeu para a minha sugestão?

"Caro amigo, nós gostamos de jardins, e os vamos construindo como dá, com pedras e areia, moldando qualquer elemento mineral disponível. Eu mesmo estou fazendo um na frente de casa, e até inventei um jeito de tornar as pedras mais belas, esculpindo ou polindo-as. Não temos como fazer jardins do mesmo modo que vocês faziam antes da grande catástrofe. Não existem mais plantas e animais na superfície do planeta. A água que restou está a mais de três mil metros de profundidade, e não temos recursos para extraí-la. Com o tempo pensaremos nisso, nossa prioridade é processar o titânio e demais minérios necessários para reconstituir nossos corpos. Também precisaremos reconstruir as cadeias carbônicas necessárias à vida biológica, o que é inviável, por enquanto. Depois da GC, não sobrou um único segmento de DNA, teremos que produzi-lo a partir do zero, e depois encontrar o jeito de fazê-lo funcionar, pois sabemos que os genes são muito mais que átomos enfileirados. Não dispomos de átomos com memória de vida biológica. Creio que teremos que implantar memórias nos minerais e uma das formas de obter esse efeito parece ser a prece, a oração e todo tipo de rito místico. Por isso estou interessado em aprender tudo sobre a história das religiões. Estou tentando me antecipar naquilo que teremos que fazer no futuro próximo para reconstruir a civilização humana no planeta. Nós mesmos precisaremos humanizar completamente nossos corpos com memórias em nível atômico, para que sejamos verdadeiramente humanos, um dia."

Foi com essa mensagem que pude ter uma visão mais real do mundo de Dario. Foi assim que fiquei sabendo que ele é (ou será) um robô vivendo num planeta absolutamente árido.

Chorei. Senti na minha própria alma a angústia de uma pessoa confinada em um corpo de metal mutilado, esmagada pela responsabilidade de recriar a vida em um planeta feito de pura pedra, sem ao menos um copo de água para começar.

Ao ser abençoado com a sensibilidade e a consciência de um ser humano, um robô capaz de ler petabytes de informações em apenas dois meses é também a vítima de uma maldição, herdeiro do inferno de sentir-se impotente e atormentado pelas dúvidas. Vi-me no lugar dele, ajoelhado diante de uma pedra para esculpir e polir, sob um céu eternamente sem nuvens, numa temperatura de 200 ou 300 graus centígrados, ouvindo algum tipo de música, comocionado pela beleza dos sons, mas sem ter certeza de estar verdadeiramente sentindo a divindade transportada pelas notas musicais... Em comunhão com esse meu descendente tão distante no tempo, oro a Deus para encontrar o sentido da existência.

Outro dia no shopping center observei discretamente um casal de adolescentes ensaiando os primeiros atos da vida adulta, tão plenos de vida e beleza que sua pele irradiava uma espécie de luz invisível dourada, azul e rosa, tão inconscientes da fantástica energia que os sustenta e impulsiona suas pequenas mas preciosas vidas. Daria um pedaço de mim para poder mostrar a cena ao meu amigo do futuro, para ele entender o quanto a vida pode ser bela.

Na primeira oportunidade contei esses pensamentos a Dario e ele respondeu assim:

"Não exagera, amigo, não precisa se automutilar. Nós temos memórias de como eram os seres vivos antes da GC. Fomos criados antes da GC, lembramos muita coisa, apenas não tínhamos em nós o conhecimento enciclopédico armazenado, nem a compreensão humana do mundo. Éramos apenas máquinas úteis, mas alguém havia inserido em nossos cérebros sintéticos os comandos para construir mundos, talvez pensando em colonizar planetas diferentes, no futuro, e esses comandos agora nos impulsionam para a reconstrução da civilização desmantelada. O que precisamos de você é ajuda para pesquisar determinados conhecimentos e você já está sendo muito útil. Somos profundamente agradecidos, sem que você precise sofrer com a missão que é nossa. Basta que nos ajude a localizar a sabedoria primordial dos seres humanos expressa nas antigas religiões, e o que você pode acrescentar são preces ao Supremo Criador, para que ele nos inspire e nos permita fazer um bom trabalho."

Comecei então a procurar na internet textos sagrados originais como os pergaminhos do Mar Morto e a Biblioteca de Nag Hammade e, com ajuda de um amigo hacker, já resgatei muita coisa da biblioteca secreta do Vaticano, isto é, da parte que já foi digitalizada. No momento, com ajuda de aplicativos de inteligência artificial estou identificando cópias dos textos sagrados da Índia, Tibete e demais centros de ciência espiritual, escritos em línguas que desconheço.

Obviamente não consigo ler a milésima parte desse acervo, vou passar o resto da vida estudando para conhecer uma fração de tanto conhecimento, mas mando tudo para Dario e ele certamente saberá decifrar e recodificar tintim por tintim.

Marco Antonio Mondini
Enviado por Marco Antonio Mondini em 10/05/2024
Código do texto: T8060116
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