Trocas Macabras e a máquina de escrever amarela

“Cuidado com o que procura, pois você poderá encontrar”. Esse seria um sábio conselho, pena não ter me dado conta antes. Lamento também por ter preterido as férias em uma daquelas metrópoles repletas de prédios, bares, casas noturnas... Bastaria apenas uma olhadela para o lado para encontrar um pouco de diversão. Ao invés disso, busquei refúgio na idílica Castle Rock. Havia algo lá à minha espera, simplesmente podia sentir.

Minha estadia na cidade ainda era bastante fugaz. Foi durante um passeio pela rua principal que me vi atraído pelo chamativo toldo verdejante, tanto pelo contorno arredondado, projetando-se para a rua, quanto pela tonalidade escurecida. Despontavam como características um tanto fora das habituais, mas intensas o bastante para emprestar certo requinte e sofisticação. Na fachada, saltavam aos olhos duas palavras: Artigos Indispensáveis. Escritas em extravagantes letras alvas, achei terem sido elas que me fizerem não resistir ao desejo de cruzar a soleira, antes mesmo de fitar os mais de dez itens expostos na vistosa vitrine.  

Sentia meu nariz invadido por um extravagante aroma, talvez provindo do piso acarpetado misturado com o cheiro de alguns dos itens à venda. Assim que entrei, chamou-me atenção a placa na parede com os dizeres: NÃO ACEITO DEVOLUÇÕES E NÃO FAÇO TROCAS - O RISCO É DO COMPRADOR! Talvez a frase, um tanto intimidadora, tenha por breve instante sequestrado minha atenção a ponto de não notar a presença daquele homem. Trajava um galante terno preto, vestes que ajudavam a conferir aparência de um vendedor nato.

A figura alta, esbelta, mantinha seus extensos dedos entrelaçados. Apresentou-se como Leland Gaunt, oferecendo um sorriso efusivo, a ponto de eclipsar seu lado mais predatório. Exteriorizava excessiva simpatia, com seus cintilantes olhos azul-escuros, que algumas horas estranhamente assumiam um tom mais esverdeado ou castanho escuro, contrastando com a desagradável sensação evocada pelo seu toque. Sem meias palavras e com eloquência, deu vazão a aparente condição de iconoclasta, assegurando possuir exatamente aquilo que eu procurava.

Bastaram alguns passos pela Artigos Indispensáveis para o meu destino cruzar com a estonteante máquina de escrever amarela. Desbundado por todo fulgor que emanava pelo inveterado apetrecho, nem precisava emprestar atenção à narrativa exposta pelo Sr. Gaunt, assegurando-me de que a ferramenta de escrita despontava como a peça faltante para, enfim, despir-me de todas as amarras e assim despertar a mais autêntica verve beletrista. Quando meus dedos tatearam as teclas acinzentadas, com os olhos cerrados, por um instante me senti o mais extremado escritor. "TEC-TEC-TEC". O som era incisivo, dominante. "TEC-TEC-TEC". Diante da epifania, penejava os melhores escritos, assistindo meus fustigantes dedos despertarem o crepitar ininterrupto da máquina de escrever amarela.

Quanto? Eu perguntei, sem disfarçar a ansiedade. Faça-me uma oferta, respondeu sem pestanejar o proprietário da Artigos Indispensáveis. Ofereci cinquenta dólares, todo o meu dinheiro, tendo certeza que o preço girava em torno de pelo menos o dobro do valor. No entanto, o Sr. Gaunt aceitou apenas uma das cinco notas de dez dólares a qual dispunha, mas deixou claro que essa seria apenas uma parte do pagamento. Posteriormente deveria quitar a dívida realizando uma quase exegese sobre sua efêmera e lendária aparição em Castle Rock.

Uma voz em minha cabeça anuncia que chegara a hora de cumprir a promessa. Ninguém jamais irá tirar de mim a máquina de escrever amarela...

Trocas Macabras

“Trocas Macabras” invadiu as livrarias do mundo inteiro em 1991, com a promessa, por parte de Stephen King, de encerrar o ciclo de Castle Rock, palco também de outras ótimas histórias como "A Zona Morta", "Cujo" e “Metade Sombria”. Embora o mestre do terror tenha rompido o pacto, a julgar pelo enredo, levou-a bastante a sério, afinal a cidade fictícia no Maine de uma vez por todas renunciou a sua pecha de outrora, há tempos sem figurar como um lugar virtuoso e seguro. Dialogava mais com um modelo de cidade noir, carregado por um erotismo diabólico, povoada por mafiosos no melhor estilo fílmico do genial Martin Scorsese. Uma urbe alastrada por almas errantes, com cada um lutando contra seus demônios e tentando ocultar seus mais pérfidos segredos.

No começo, pareciam apenas travessuras despretensiosas, como macular lençóis de uma vizinha que impolutos foram dispostos para a secagem em seu varal. Gradativamente, as intrigas adquiriram contornos mais aterrorizantes e logo a cidade inteira servia como pano de fundo para animosidades, vinganças, traições, juras de morte, uma real disputa generalizada. Daria para acreditar que os conflitos estão atrelados ao preço a ser pago por artigos aparentemente indispensáveis para a vida?

Todas essas coisas podiam ser encontradas na nova loja da cidade. Bastaria uma rápida passada pela “Artigos Indispensáveis” para das mãos de Leland Gaunt, um sombrio e misterioso forasteiro responsável pela lojinha, aflorar o objeto dos sonhos, às vezes antes mesmo de se pensar neles. E a melhor parte: com preços muito sugestivos, somente subordinados a pedidos estranhos ou altamente embaraçosos. No entanto, vale tudo para satisfazer a volúpia mais consumista, não é mesmo? 

Com a veia aquisitiva estimulada ao máximo, no tortuoso caminho da luxúria, não demora a praticamente toda cidade se ver enredada por uma obscura teia. A única esperança ruge por meio do xerife Alan Pangborn, um policial enlutado que tenta superar a trágica morte da esposa e filho, além de Polly Chalmers, uma costureira que precisa lidar com uma artrite a acometê-la prematuramente. Os dois mantêm um relacionamento amoroso e unem forças para lidar com seus conflitos e tentar desvendar os fatídicos eventos na cidade.

Do outro lado, o bondoso Sr. Gaunt se revela uma impiedosa e calculista criatura das sombras. Dedica sua eternidade a andejar pelo mundo apenas para espalhar dor e podridão, engabelando pessoas a se afeiçoarem a objetos ausentes de qualquer valor. Com esses elementos, “Trocas Macabras” se mostra uma obra carregada por nuances, algumas bastante inerentes. Consegue esmiuçar valores controversos, desde a exacerbada ganância coletiva, o anseio por um escapismo da realidade, até a vaidade descomunal e totalmente desequilibrada. No fundo, todos possuem um lado perverso que uma vez revelado, levará a realizações horríficas. E para isso, talvez baste apenas realizar o estímulo correto. 

“Trocas Macabras” é um livro estonteante, traz personagens bem delineados, exaltando diversos recursos narrativos, além de apoiar-se em protagonistas notáveis, construídos com esmero. A dinâmica dos eventos se desenrola paulatinamente, apresentando os moradores de Castle Rock e passa a atribuir importância à medida do seu decorrer. A diegese se torna mais célere nas 150 ou 200 últimas páginas, que passam ao leitor uma invulgar sensação de freneticidade. A conclusão da história também se mostra satisfatória, rechaçando a patética e quase hegemônica vertente de que Stephen King recorre a desfechos poucos inspirados em suas obras.

Máquina de escrever amarela

Promessa cumprida! Ninguém ousará me separar da minha máquina de escrever amarela. Agora, existe outra voz na minha cabeça a sugerir: nem mesmo isso fará de você um escritor aclamado, seu bobão... Será que no fim fui ludibriado pelo proprietário da Artigos Indispensáveis? Ao menos valeu a pena passar um tempo em Castle Rock e fazer parte dessa excelsa história. Às vezes, penso que essa foi a grande mentira que Leland Gaunt me deixou acreditar, ao contrário de um singelo apetrecho apinhado de teclas que estranhamente é capaz de impulsionar minhas duvidosas habilidades.

Inclusive, pessoas me garantiram que a máquina de datilografia não passa de uma sucata com a cor desbotada, repleta de ferrugem e com maior parte das teclas empenadas. Naturalmente, elas todas não passam de hipócritas golfando puro despeito.

Rafinha Heleno
Enviado por Rafinha Heleno em 02/05/2024
Reeditado em 02/05/2024
Código do texto: T8054609
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