Há quem tenha perdido a vida e ainda respire

Minha cabeça não para de pensar nessas pessoas.

Cada vez me dou conta de mais um elemento que perderam.

Esses elementos estão nas coisas triviais e rotineiras, percebo como o trivial e rotineiro é bom, confortável e importante.

Simplesmente tudo foi usurpado de muitas pessoas juntas, ao mesmo tempo.

Vidas foram zeradas, sem programação, sem aviso.

Quem sobrevive precisa recomeçar de uma linha muito atrás do zero.

Penso como está e ficará a vida, a saúde mental, dessas pessoas.

A maioria não conta a história que afetou um aspecto da vida, ou trabalho, ou casa, ou família.

Foi tudo junto e ao mesmo tempo.

Não há mais uma rotina mais para dizer “agora é a hora de fazer isso”. O “isso” não tem mais um tempo-espaço.

São corpos jogados no mundo.

Minha filha me chama na madrugada e isso fica girando na minha cabeça.

Olho para ela e agradeço, por ter uma casa, roupas secas, água. Por minha filha ter onde dormir, ter fraldas.

Ao seu chamado, saio da minha cama seca, macia, limpa e quente, caminho o corredor sob o teto que eu tenho, entro no quarto dela, a pego de seu berço, igualmente seco, macio, limpo e quente.

Penso em cada mãe que está num abrigo, na mãe que espera socorro, com seus pequenos.

Não consigo dimensionar o que passa na cabeça dessas pessoas. Tentar fazer isso é em vão. Tenho certeza de que não consigo me aproximar de uma fração do sentimento que carregam.

Percebo que sou privilegiada pela condição que estou, e sinto-me constrangida de estar num espaço confortável, com minhas falsas seguranças - porque nada é permanente.

Daqui a pouco volto ao meu trabalho - porque esse espaço-tempo existe para mim.

Meu salário caiu na conta.

Posso ir até a garagem e encontrar meu carro inteiro.

Posso sair e caminhar na rua – existe rua em que meus pés tocam o chão.

Posso ir até o ponto do ônibus – ele vai passar.

Posso tomar um banho quente.

Posso escolher a roupa (limpa e seca) que vou colocar.

Posso tomar água.

Há muito para ser feito, por muito tempo.

E há o que não se recuperará, nunca.

Hoje olhar para uma foto da infância é um privilégio.

Há quem tenha feito um relicário de memórias para contar suas histórias aos seus filhos. Ele se foi com a chuva, com o rio.

As perdas são incontáveis, incalculáveis.

Perderam o insubstituível.

Perderam a vida, apesar de ainda respirar.

Aos que perderam tudo, mas ainda respiram.

Meu respeito, minha solidariedade, minha oração.

Cris Damiani
Enviado por Cris Damiani em 09/05/2024
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