Memórias póstumas de um homem morto por uma latrina em queda livre - Capítulos 4, 5 e 6

Capítulo 4 - Jornalismo Especializado

Eu iria retornar à cena do enterro neste capítulo, mas decidi adiar só para falar um pouco mais de jornalismo. Espero que o leitor me entenda: se falei de uma especialização do jornalismo, seria injusto não mencionar um ocorrido inovador. Na sua obra “O Jornalista Profissional”, o professor de Jornalismo John Hohenberg mencionou “a necessidade de coberturas especializadas em todos os níveis do jornalismo”. Ele partiu da viagem da Viking I até Marte para dizer que “nenhum repórter sem especialização poderia ter descrito ou explicado o acontecimento para uma audiência mundial”.

Do mesmo modo, a complexidade do meu assassinato, cuja arma foi um vaso sanitário em queda livre, jamais poderá ser explicada por um repórter não especializado. Um perspicaz editor de um jornal soteropolitano sacou isso:

- Foi um acontecimento sem precedentes. Se não havia jornalismo especializado em morte provocada por latrinas, a hora é agora!

- E como você vai concretizar isso?

O editor propôs ao diretor de redação a criação de uma editoria focada em mortes desse tipo.

- Seria, na verdade, uma subeditoria do jornalismo policial. - afirmou o diretor.

- Não, não seria. - redarguiu o editor. - Assassinatos provocados por vaso sanitário conseguem a façanha de ser fait divers ao mesmo tempo em que entra no terreno do crime. Vou usar uma metáfora: imagine dois conjuntos, um representa a editoria de polícia; outra representa os fait divers. Crimes provocados por uso de latrina seriam uma interseção entre ambos. Por isso trata-se de uma editoria autônoma. Se fosse subeditoria, seria um conjunto dentro do conjunto do jornalismo policial. Mas o jornalismo latrinal possui características que transcendem o jornalismo de polícia.

O editor venceu no argumento e logo isso se tornou tendência. Os jornais abraçaram o jornalismo latrinal e isso virou editoria consolidada dentro da imprensa.

Confesso que até me senti honrado. Quem diria: uma morte tão ridícula acabou revolucionando o jornalismo!

Capítulo 5 - Sepultamento

Voltemos ao enterro, enfim. Depois de meu pai ter expulsado Eduardo do meu sepultamento, o cortejo fúnebre seguiu até o túmulo onde eu seria enterrado. Foi um evento assaz assistido, pois muitas pessoas pegaram seus celulares e começaram a gravar. Quem estava mais próximo para ver meu caixão descendo conseguiu mais visualizações e compartilhamentos. Estar presente no enterro do “homem morto pelo vaso sanitário” dava à pessoa um status incomum nas redes sociais. Era um evento em que muita gente queria presenciar.

Enquanto os coveiros faziam o trabalho, uma pessoa decidiu fazer um discurso. Estava vestida de preto e os olhos estavam fundos de tristeza que certamente ajudavam a formar o cenho melancólico e distante. Uma pessoa que sofreu com a minha morte. Não, não é minha mãe. Mas, sim, a minha namorada Sofia. Era advogada. Na formatura recente, fez um belo discurso para centenas de recém-formados como ela. E mandou bem. Portanto, era de se esperar que ela dissesse coisas poderosas que comoveriam as pessoas ali presentes.

- Marcelo almejava alcançar o posto de chefe na Companhia de Telemarketing. Uma latrina em queda livre estraçalhou seu sonho…

Ok, melhor parar. E esclarecer ao leitor: eu nunca quis trabalhar como chefe de empresa de telemarketing. Sofia entendeu errado.

Prometi ao leitor relatar os eventos que levaram à minha morte, mas parece que estou enrolando. Sem embromação vou começar a fazer isso e creio que a minha conversa com Sofia, sobre meu futuro, possa ser um bom início.

Capítulo 6 - A ironia da ironia

Eu e Sofia tínhamos acabado de fazer sexo quando começamos a conversar sobre nosso dia a dia. Na época eu trabalhava na Companhia de Telemarketing, mas não queria ser chefe coisa nenhuma, eu estava na faculdade de jornalismo. Contei para ela que o meu chefe tinha recebido várias cartinhas de amor de várias funcionárias.

- Seu chefe deve ser um garanhão! - ela disse.

- Você não entendeu nada. Ele é feio pra c…! Mas ele é o chefe. Estão dando em cima dele por causa disso.

- Está usando de machismo porque deve estar com ciuminho né…

- Machismo!? Meu Deus! São as “Marias Gestoras”! Todo sabe que isso existe!

- Maria Gestora? Explique.

- É um tipo de “Maria”, como há Maria Chuteira, Maria-vai-com-as-outras etc. São mulheres que dão em cima do gestor da companhia de telemarketing para conseguir algum cargo melhor.

- Continua sendo machista.

- Que seja! Mas é a pura verdade!

- Fale a verdade. Você está com inveja do cara. Ele é garanhão. Você queria ser como ele.

- Claro! É meu sonho ser o chefe só para fazer isso!

Entendeu bem essa minha última fala, leitor? Eu estava sendo irônico. Não sei como uma pessoa inteligente como Sofia não notou isso. Ou pode ser que ela tenha notado e tenha me sacaneado no meu próprio enterro. Enfim, queria mostrar como a ironia pode ser usada contra nós mesmos. Nesse caso, acredito eu, parece ser um caso tão singular quanto ao meu assassinato: “a ironia da ironia”. E por que isso? Porque a minha ironia foi usada de modo irônico posteriormente. E contra mim. A ironia da ironia é um modo de enfrentar pessoas sarcásticas e mordazes. Sofia foi brilhante nisso. Porém, foi cruel em fazer isso no meu enterro.

No dia seguinte ao coito e ao diálogo, ela fechou a cara para mim e foi trabalhar sem se despedir. Esperei meia hora e saí também. Encontrei um homem entregando folhetos logo na saída. Nem tentei me esquivar, pois certamente teria mais deles mais à frente. É impossível escapar dos entregadores de folhetos. No entanto, esse homem será fundamental nesta trama, leitor. Esse nosso encontro dará início à trama. Quem é ele?

O meu assassino. O cara que jogou a privada para me atingir.

Continua...

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 11/05/2024
Código do texto: T8060864
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.