MISTÉRIOS MORADORES E ARMADILHAS DA MINHA CASA

Desde 2012 com a morte dos meus pais fui obrigado a aprender a cuidar da vida por mim mesmo e depois descobri as dificuldades do viver SÓ e a tentar também desvendar os mistérios desta casa onde moro desde 1976. Alguns deles prefiro não mencionar aqui para não assustar o leitor, nem impedir seu sono. Saiam fantasmas da madrugada, agora é dia, escondam-se. Abstenho-me. Melhor evitar certas coisas, nem mexer com certas coisas. Mas se eu contar...

Revelarei aqui apenas algumas coisas que me encucam nessa casa que parece ter vida.

Será que em sua casa caro leitor, acontecem também estes fenômenos?

Descobri tudo isso depois que passei a ser dono de casa. Quem é dono ou dona de casa sabe que:

O isqueiro é um sacana que apronta mil estripulias. O isqueiro sempre se esconde da gente. Já reparou isso leitor amigo? O danadinho sempre se esconde. Vou preparar alguma coisa, pego o dito cujo que fica em cima da minha bancada da cozinha, acendo o fogo, vou pegar a panela ou alguma coisa e quando volto, zás, ele sumiu. Então procuro daqui e dali. Depois descubro que o safadinho se escondeu debaixo de alguma tampa de panela sobre a bancada. Bastou eu me afastar para ele rapidamente pular para debaixo da tampa e ficar lá olhando o bobão procurando. Quando o encontro tenho até a impressão que da uma gargalhada sarcástica diante da peça que me pregou. Outro descuido e ele some de novo. Acho que zanza para lá e para cá na cozinha. Até imagino duas perninhas na parte de baixo correndo por cima do fogão da bancada para se esconder. Deve soltar uma risadinha fininha e maldosa. Apesar da cabeça quente, e no momento da refeição sua cabeça sempre está muito quente, ele consegue pensar em mil formas de trolagem. Tem momentos em que não quer acender, quando se molha solta apenas faísca o que me provoca raiva, esquenta aquela rodinha na parte de cima e queima meu dedo. Também queima quando inclina a chama para um lado e depois põe a culpa no vento, quando está engordurado desliza pela mão e cai ao chão. Faz-me pensar que foi deslize, mas na verdade saltou. Tem horas que escapa da mão, escapa nada, pula e vai para trás do fogão num lugar de difícil acesso, então tenho que arrastar o móvel para pegá-lo. Recusa-se a acender o forno, diz não caber lá dentro e tem medo de cair de vez e queimar naquele inferno. Já ajudou e cobriu a vida da sua amiga vela, de luz. Tem o costume de destruir as coisas por onde passa, é inimigo numero um dos papéis. Vai aprontando daqui e dali para ver a minha reação e soltar risadas quentes. Talvez ele seja um menino arteiro cheio de fogo e lenha para queimar, talvez seja a chama ardente da paixão por mim que o corrói por dentro. E queira me chamar a atenção, para sentir minha mão carinhosa passando sobre seus cabelos duros em movimentos rápidos. Filhinho papai tá aqui. Carente demais esse rapaz. Ou quem sabe queira iluminar minha vida com o seu luzir azulado, me fazendo ver que é importante ter o que cozinhar e poder preparar meu próprio alimento. Talvez se esforce para eu ver a luz do ato de valorizar as coisas que tenho e que posso fazer. E só vai sossegar de vez quando lhe faltar energia, ou seja, quando ele ficar sem gás. Então vai vir o colega dele já instruído de fábrica para fazer hora comigo de novo. Posso comprar mil isqueiros sempre vão acontecer essas coisas. Descuidou ele escapou, se safou, se escondeu. E mil coisas vai aprontar. E depois ri do meu modo atrapalhado procurando e xingando. É verdade ou não é? Terminada a feitura da refeição ele volta para a sua bancada e lá permanece quietinho até o momento de brincar de novo.

Já repararam com as roupas se multiplicam? Vejam bem. Você coloca uma determinada quantidade de roupa na máquina depois quando vai pendurar no varal está o dobro da quantidade. Tenho a impressão de que elas se multiplicam dentro da lavadora. Será o milagre da multiplicação? Eu sei essa com pães e peixes. E eu achando que aquele vai e vem era só roupa sendo lavada. Não, aquilo é orgia pura, safadeza, um esfrega esfrega só, e quando termina a população aumentou. Deve ser o perfume do amaciante que funciona como afrodisíaco, ou o pó do sabão em pó que tem o efeito daquele outro pó, quem sabe se não é a kiboa que provoca o êxtase e que faz tudo ficar numa boa. Uma calça e uma blusa geram uma nova meinha. Um paletó e uma camisa produzem uma cuequinha. Toalha de banho é mãe da toalha de mesa. A relação homo afetiva entre o casaco e o blazer não pode gerar filhos, mas eles pretendem adotar um biquíni. O abraço quente do moletom seduz a camiseta, que fica toda regatera. Uma calça perdeu o botão na brincadeira. O calção é um solteirão não se envolve com ninguém. É sistemático, solitário e não gosta de multidão e queria se livrar de algumas peças para o ambiente ficar mais tranquilo. Ele deseja tirar as roupas de baixo. O paletó morde a fronha. E ninguém imagina o que acontece entre os lençóis. E por aí vai. Você pendura, pendura e nunca que acaba de pendurar. E às vezes o sexo é tão selvagem que além de molhadinhos alguns participantes até ficam esfolados, rasgados, desfiados, desbotados, um caco só. Nem aquela camisa velha que era tão conservadora continua enxuta. E apesar de tudo a lavagem nem fica tão boa, as roupas quando saem do motel Suggar, não estão lá essa Brastemp de tão limpas. É por que falta amor e profundidade nos relacionamentos, a vida não é só o esfrega esfrega. Alguém precisa falar mais sério e passar um sabão nessas roupas depravadas. Para onde vai esse mundo? Uma roupa tem que ter linha. Não pode se deixar dobrar facilmente. Deve Honrar o guarda-roupa que as acolheu. Ser mais agradecidas ao ferro elétrico que nelas faz tanto carinho. Algumas dão pano pra manga e retalho pra capanga. Até as roupas desbandeiraram, se perderam na indecência e na imoralidade. É preciso lavar a honra dessas peças do vestuário, alvejar suas almas para limpá-las de todas as manchas. Depois da honra rasgada, não adianta remendar. Rasguei o pano do verbo agora. E por causa de toda indecência temos mais trabalho para pendurar, dobrar e guardar. Depois sujar, e depois novamente a luta com o aumento população que causa de tantos males. Roupinhas, juízo meninas.

Acho que vou abriu uma boutique.

Lava, seca, guarda, usa suja, lava...

Panelas e cozimentos outra luta ferrenha. A gente nunca sabe a quantidade de água deve colocar para o ponto certo do cozimento. Ora cozinha demais, ora fica mal cozido. E tem também o problema da doença da LER, LER... DEZA para vigiar as panelas e não deixar queimar. Nesse assunto temos um inimigo crucial o tal do celular. Ah é fatal, distraiu-se um pouco vem aquele chiado e aquele cheiro característico. A aquela panelinha ficou tão preta que nunca consegui fazer com que voltasse ao normal. Na hora de lavar é um martírio também. Você lava e acha que está livre, e pode descansar, mas as panelas e pratos surgem do nada. Acabou de lavar já tem alguns sobre a pia. Tenho a impressão de que se abre um buraco na pia e elas brotam lá de dentro, feito xuxu no muro. É mais uma coisa que se multiplica do nada.

E por falar em panela, A panela de pressão é uma senhora misteriosa. Parece uma madame gorda, emproada, arrogante, cheia de caprichos. Sempre traz uma surpresa quando abrimos e faz as coisas às escondidas. Ela chia e parece xingar a gente, fazendo aquele barulho irritante, mas temos que entender suas manhas e não cobrar muito dela pois afinal ela trabalha sempre sob pressão. Não sei bem como lidar com ela. Coloca-se o feijão de molho, seguindo as dicas de algum youtuber amigo para eliminar substancias ruins do feijão, ela derrama na hora que é pressionada. Se não deixo de molho, gasta tempo demais para cozinhar e muito gás. Ah o tempo, esse é o problema, não sabemos o que acontece lá dentro e nunca podemos calcular o tempo certo. Para saber se o alimento está cozido, temos que desligar tirar a pressão testar depois dependendo voltar de novo ao fogo. É muito complicado. Ela fica tão brava as vezes que tenho a impressão que vai explodir de raiva. Tenho medo da explosão. E quando começa a jogar agua para fora sujando todo o fogão torra a paciência da gente. Certo dia soltou um canudo enorme para o alto sujando toda a parede, fiquei com medo dela explodir e a desliguei. Um dia coze demais, no outro fica duro o alimento, é difícil demais calcular o tempo e o cozimento. Ela às vezes rouba um pouco da comida. Um dia fui cozinhar uma carne e quando olhei estava só a metade da carne dentro da panela, ela comeu a outra parte. Uso-a somente quando o alimento está mesmo muito duro.

O leite então, esse é maior safado. Não estou falando dos comportados leites de caixa, mas sim do tradicional leite da roça, vindo direto das fazendas, que aqui em nossa cidade antigamente era vendido pelas ruas e agora apenas em alguns estabelecimentos, é um cara extremamente problemático. Ponha-o para ferver. Fique atento, o tempo todo concentrado nele, não pisque, vigie. Ele vai despistar você, fazer de conta que é inofensivo, vai hipnotizar você fazendo com que mude de lugar a sua atenção por alguns segundos, o sem vergonha vai esperar você se distrair então vai ferver de uma vez e derramar tudo, sujando o fogão. Ele não tem pressa, espera a hora certa, todo matreiro. Depois agarra no fundo da leiteira que nada consegue tirar. Ele briga até com teflon. Mas é saboroso.

Temos muitos moradores por aqui, eu a minha filhinha bichológica Manu, a Manuela magrela, algumas arainhas que insistem em habitar as paredes com os seus emaranhados de encrencas, formigas por todos os lados, traças, pássaros no telhado, as simpaticíssimas lagartixas de parede, as galinhas do meu cunhado, galinhas do vizinho que passam por um buraco do muro, e outros bichos mais que vêm nos visitar. Cada um de forma própria faz a sua bagunça por aqui.

A casa é grande, às vezes me perco e preciso acionar o GPS para ir da garagem até o quintal passando pelos quilômetros e mais quilômetros de cômodos no meio do caminho. Quarto, sala copa cozinha, cobertas... Tem dois banheiros, mas uso apenas um. Uma garajona onde fica a minha nave prata, e uma garajinha onde fica minha nave negra. Dois cômodos na área externa com a função exclusiva de ajuntar sujeira, um quintalzinho com poucos pés de planta, e alguns pés de galinha acompanhados de corpos de galinhas que nem são minhas. Juntando tudo casa e lote são 250m² de vida pulsante, as vezes terna, noutras aterrorizante, sempre pronta a me aprontar alguma peça.

Têm muitas outras coisas, mil coisas, coisas demais, que não contarei aqui. Quem sabe num próximo livro.

Às vezes penso que a casa como um todo tem vida própria. Tem uma luz que ficava piscando mesmo com o disjuntor desligado, sempre está aparecendo alguma coisa nova dali e daqui, um entupimento, uma parede que descasca. O piso solta do nada também. E ela se suja sozinha. Isso é o que mais me intriga, eu limpo e logo logo está suja novamente, uma manchinha aqui, um lixinho de lá... Penso que ela pensa, e fique maquinando coisas para me atormentar. Imagina-a como uma senhora velha parecida com uma bruxa com roupas puídas, um chapéu enorme uma verruga muito feia na ponta do nariz e esfregando as mãos ela diz: -Vou esperar apenas ele limpar para eu me sujar de novo, vou fazer hora com ele, aprontando varias coisas por aqui...

Descasca, pisca, mofa, suja, apronta, alegra, entristece, anima, desanima, alto, baixo, oito, oitenta... E por aí vai.

Sei que posso através desse texto ter despertado no leitor uma ideia de decadência total, mas não é bem assim. Essa casa tem uma importância muito grande em minha vida e minha história apesar de todos os seus caprichos e peraltices. Mas eu vou enfrentando a fera, ou as feras que povoam a selva bravia do meu dia a dia com os seus ataques ferozes nessa luta constante do viver.

Até mais amigos. E cuidado quando vieram me visitar.