Estorvo

“Porque meu coração dispara”. Porque meu coração diz: para. Engraçado isso. Disparar pede arrego. Todo o afã em volta do coração se desmanchou em água, em oceano: “vem me fazer feliz porque eu te amo”. Simples assim. Óbvio, direto, quase matemático. E ainda assim é poesia. Gosto quando versos se travestem de simples trajes. Ou até mesmo quando andam nus sobre os nossos olhos. Se sobem pra cabeça ou se descem pro coração, não sei, depende do que a vida fez com a nossa vida.

E nessa da vida fazer o que bem quer com a gente, me vejo negar o que eu peço que aconteça. Queria ter um olho mágico pra ver que ontem a minha vizinha, a mesma que me pediu um balde emprestado esses dias, me chamava. Hoje eu ouvi os seus toques. Tudo em mim emudece, me ocorre uma preguiça repentina, um sexto sentido que eu não acredito, um espírito de fugitiva, uma sonsidão maléfica que me diz pra fingir que eu não ouvi. Retiro minha touca de cetim, ajeito minha roupa, jogo pra dentro do quarto o meu travesseiro, me levanto do chão e abro a porta. Não escancaro, mas também não fecho comigo pra fora, tampouco convido uma parcialmente estranha para entrar. Percebi que deixei minha mão pendurada na porta como quem diz estar com pressa, como quem quer mostrar que o seu desejo é o de entrar e permanecer trancada pelas próximas 48h. Agora ela sabe que eu estou em greve, agora ela pode querer vir todas as noites de terça-feira. Ou de quarta. Ou até mesmo de domingo. E eu, que sempre quis uma vizinha amiga, me afogo em minha contradição. Mas não é maldade minha. Ela disse que poderíamos marcar alguma coisa, uma praia. Eu disse que poderíamos. Fim. Não gosto que invadam esse meu espaço, essa não é a minha casa, tudo aqui é tão exposto e apertado que não vejo como trazer alguém de fora pra dentro. Não quero que me peçam xícaras, panelas ou roupas. Da penúltima vez que em pediram alguma coisa emprestada, eu dei e disse que não precisava me devolver. Não gostava dela. Não posso emprestar uma xícara porque não tenho. Não posso emprestar panelas porque eu não planejo perdê-las. Não posso emprestar minhas roupas porque são minhas roupas. No entanto, eu sempre gostei de dar coisas. Não de emprestar. Eu não empresto uma roupa porque eu não confio em quem pede uma roupa emprestada, mas eu vivo doando. E adoro dar o que foi meu pra quem eu gosto. De arrumar alguém com minhas coisas. Minha prima fez quinze anos sem ter um vestido, uma maquiagem, um bolo. E então eu pus nela o meu vestido que usei no meu aniversário de dezoito anos, resgatei minha coroa que usei aos quinze, fiz a maquiagem mais terrivelmente rápida que alguém poderia fazer, tirei umas fotos, escondi o bolo e os salgados na casa de nossa avó, precisei enganá-la (o que é ridiculamente fácil), na cozinha de casa estava minha mãe fazendo um pão pra eu levar na viagem do dia seguinte, eu arrumava as malas e pensava que aquele era um dia triste pra uma menina fazer quinze anos. Não é porque uma criança diz que não precisa que ela não quer. Falei pra irmos pra casa de nossa avó, que fica a alguns passos de distância, pois ela tinha assado uns pães de queijo. Minha prima, que estava toda arrumada por conta das fotos que eu inventei de tirar, se empolgou tanto com uma noite de pães de queijo que eu não consigo me lembrar disso sem me entristecer. Ela pensou ser aquilo o seu aniversário, que até então estava em branco, exceto por meu presente sobre ela ser uma princesa de um reino desconhecido e alguma coisa sobre diamantes, não lembro. Mas eram zircônias em seu colar e brincos, contar histórias não dá tanto dinheiro. Na mesa da cozinha, estávamos vovó, vô, mãe, a mãe dela, ela e eu. Um bolo de última hora, um suco ruim, alguns salgados, véspera da minha ida, algumas caras tristes. E ela não parava de dizer que estava imensamente feliz. Feliz, genuinamente feliz. Que nos amava. Que era perfeito. E eu quis chorar. Eu, egoísta e pequena e mesquinha que fui naquele momento, quis chorar por ela. Tive pena. Me doeu ver que ela não teria nada. E com tão pouco ela foi feliz. Não que eu também não seja assim. É que ela merece tão mais do que consegue pensar. Se eu pudesse, eu faria a surpresa mais incrível do mundo. Ela teria a mais linda festa de castelos encantados ou de Harry Potter, não sei, e depois ela teria seu sonhado intercâmbio no Canadá. Ela teria todos os livros que quisesse, ela poderia ir ao cinema, ela teria um computador, ela teria um psicólogo pra que ela consiga ser uma adolescente em nossa família, o que é comprovadamente impossível. Todo mundo que não tem um pai ou uma mãe precisa de ajuda profissional. Inclusive pra quem tem pai e mãe. Ninguém sai ileso. Estar vivo é pra se sujar. Já nascemos precisando de um banho, de peito, de comida, de alguém que nos ame e nos abrace, de alguém que fique feliz simplesmente por nossa existência. Eu desconfio do motivo pelo qual os pais desmaiam em partos. Será que eles também sentem os filhos como as mães? Meu pai fala de amor incondicional. Talvez os pais ganhem o direito de falar essas coisas somente por esse título inquestionável que a vida lhes deu. Eu o tornei pai. Mas não é uma grande coisa. Poderia permanecer na espiritualidade sem encarnar. Às vezes eu queria ser um anjo. Ou uma sereia. Ou uma fada. Ou qualquer coisa bonita que existe só na imaginação. Se bem que agora eu só existo na imaginação das pessoas, exceto por essa vizinha que me fez abrir a porta. Ela me viu, atestou a minha existência e foi embora. Ontem um menino me disse que achava que eu não existia. Mas que quando me viu pessoalmente, pensou que eu existia até demais. Que eu era linda de verdade. Uma pena que ele é ele, e não você. Acho engraçado eu te dedicar boa parte de minhas palavras e um lugar no meu coração sem saber exatamente quem tu és. “Tolice”, diria minha mãe. Deve ser. Meu coração é vagabundo. Se Djavan te conhecesse, você também seria devorado. Alguém faria uma música em teu nome. Uma espécie de “Menino do Rio”, mas um tanto mais baiano e sem um dragão tatuado no braço. Um tanto menos solto. Eu não posso querer te abrir. Te abrir a cabeça e marcar palavras em teu cérebro. É melhor do que um tiro direto no coração, que mata. Palavras no cérebro contam historinhas pro coração sentir, depois o estômago, depois um pouco mais embaixo, depois o corpo todo. Mas eu queria que me partissem ao meio, que me arrumassem por dentro. Que me hipnotizassem pra eu ter quatro dos meus zilhões de medos. Que me endireitassem as pernas e os sentidos. Que pendurassem em meu cérebro um espelho.

Não gosto de ter conversas do zero porque sou obrigada a reviver minhas dores. Mas pra você eu dissecaria meu espírito, se quiser saber. Simples assim, como quem flerta ao pé do ouvido. Se não me calar a boca, eu posso falar até não sentir mais o gosto das palavras. Até estranhá-las como num idioma novo. Até não reconhecer mais o som de minha voz. Até desaprender de vez. Eu esqueço como usar a boca com quem eu excedo em dizeres. Que ironia.