“Eu sou os punhos de Jack”.

Pra alguém que diz que gosta de escrever, as palavras me faltam como se eu não fosse nativa. Em datas comemorativas, especialmente. Ou não. Pode ser em uma quinta-feira qualquer também. Acho que eu sinto o que o olhar de meu pai transmitia nas raras vezes que saltava um “eu te amo” de sua boca. Ele parecia se envergonhar. E eu muito mais. Que tipo de pecado consiste em dizer que ama eu não sei. Mas deve haver. Uma queimação que sai do ouvido e vai para as têmporas, que enrubesce o rosto e me deixa tonta. O correto seria “amo-te”. Nunca vou dizê-lo, me soa tão distante. Mais do que isso é o “eu também” ou somente “também”, que ainda peca por poupar o “eu”. Mas “idem” deve ser pra quem tem problemas mais sérios do que eu. Tudo é mais fácil do que um “eu te amo”: falar em terceira pessoa, falar que é recíproco, não falar nada, descobrir um novo elemento químico, ignorar a pessoa e mudar de número. Ou de coração. São só especulações. Tardo em paixão, que é agora, que dirá em amor — que é coisa de maduros.

E por falar em paixão, acabo de ver uma foto antiga de um ator que não reconheci — pois logo enxerguei naquele rosto, o dele. Não sei se realmente parece, o que não importa muito, eu já vi o seu rosto no som de um violão. Capricho árabe. Não combina com tua feição de Tom Hardy em 2002. Faltam as tatuagens, mas você não é do que tipo que se deixa marcar.

Dias das mães. Domingo. É, não combina também. Talvez por culpa nossa. Nunca fazemos o que as famílias supostamente fazem. Os domingos amanheciam cansados. Eram perigosamente regados do pior da TV aberta. Pintávamos as unhas. Comíamos pipoca. Não assistíamos a filmes porque ela dormia. Até hoje dorme. Quanto melhor era o filme, mais ela sentia o efeito sonífero da qualidade. No entanto, seus olhos e ouvidos eram apuradíssimos para ouvir Eliana humilhar pobres nordestinos em seu programa, assim como seu ex-namorado Luciano Huck. Almas gêmeas separadas por uma emissora.

Dia das mães, segundo domingo de maio. Até o ano passado eu perguntei quando era mesmo o dia das mães. Pra ela. Eu nunca deixei de materializar o meu “eu te amo”, mas sempre perguntava o dia. Dessa vez eu não somente não perguntei, como também respondi para quem teve dúvida. Altiva, madura, de boa memória, responsável: “dia 12 de maio”, respondi. Claro que eu sabia. Há pelo menos dois meses eu encomendei um bolo pra ela. Todos os domingos que vão se findando contêm a fala que ela repete desde quando eu era pequena, a vontade de comer um bolo confeitado. Vontade que passava pra mim, assim como quase tudo que ela sente. Eu adorava bolos de aniversário. Ficaram ruins. Nossa amada e única confeiteira à moda antiga realmente ficou antiga. Agora uma outra assumiu o seu posto. E eu quero que ela coma o bolo que não comeu nos domingos antes do que se aproxima agora. Que pinte suas unhas, que assista Eliana, cujo programa se aproxima do fim, e que depois termine a noite como sempre fizemos: vendo o Fantástico. Para o cidadão comum tipo 01, há um equilíbrio perfeito entre o circo da tarde e o “jornalismo sério” da noite. Meus avós riam na cara dessa teoria fajuta: globo rural pela manhã, jogo às 16h da tarde e circo premium às 21h da noite, antigamente comandado por Senor Abravanel. O quase extinto Silvio Santos. Quem nos introduziu ao Fantástico foi meu pai, que provavelmente hoje já migrou para a mídia independente. Certo ele. Eu vejo tudo. Os alternativos da minha cidade diriam que a Globo é uma mídia corporativista burguesa (fato) e que todas as outras nadam em um mar neoconservador de interesses mercadológicos pretensiosamente protegidos pelas elites políticas. Afinal, o sistema de concessões da TV brasileira cospe na face da constituição. O que ver, afinal? Os pequenos alternativos, filhos dos pais politizados, só podiam ver a TV Cultura e Futura. Eu adorava. Nem mesmo a Cartoon Network me fez abandoná-las. Será que eles sabem que quase tudo, inclusive as nossas almas, são da Globo? Melhor seria atiçar fogo nos aparelhos televisivos e eles próprios serem o entretenimento saudável para os seus filhos, com um destaque especial para as brigas matrimoniais. É o show da vida. É fantástico.

Poucas coisas me entristecem mais do que não saber os porquês. Que tipo de castigo divino precisa se manifestar em um bolo solado, em uma máquina de lavar que joga água por toda a casa que você acabou de limpar, em um bicho medonho que entra em sua casa devidamente protegida para evitar bichos medonhos, em uma chuva que vem só pra molhar todas as suas roupas e depois vai embora, em um chinelo que quebra no meio do asfalto quente, em um boa tarde ignorado, em ver seu ônibus partindo sem você, em uma vontade incontrolável de tossir em sala de aula após tossir outras incontáveis vezes. Enfim, nas coisas simples que sozinhas são capazes de momentaneamente retirar todo o brilho de viver. Não que isso seja sobre mim. Pouco disso aqui é sobre mim. Falo de domingos, de mãe, de paixão. Talvez eu seja feita disso, afinal. Com algum “elemento X” na composição. Indecifrável. Gosto desconhecido. Aroma artificialmente idêntico ao de um ser humano normal. Alto teor de romantismo adicionado. Livre de gordura trans. Baixo em otimismo. Alérgicos: pode conter castanha-do-pará, soja e poesia. Consulte a embalagem. Acho que ela pode ser atrativa até desenrolar a bula, que corre solta cobrindo o chão. Efeitos colaterais indeterminados. Perigo: altamente inflamável. Eu também deveria vir com um aviso de “cuidado: frágil” pregado na testa, não se que importem com isso, houve um entregador que atirou uma televisão pelo portão. Nada impede que eu me quebre também. Talvez alguns isopores emocionais e um plástico-bolha da sabedoria amorteçam a queda, não me desfigurem a cara. E talvez seja isso que a vida quer da gente, além de coragem.

Em vez de falar com seu id, que se materializou em um bad boy bonitão, aquele miserável deveria ter buscado por terapia. Sim, estou falando do que não se pode falar. Primeira e segundas regras. Quando eu li “Clube da Luta”, tinha por volta de quinze anos. Achei esse livro nas coisas de minha mãe, afinal, foi tema de seu TCC. Nunca vi um livro tão profanamente rabiscado. Mas com letrinhas lindas que só ela tem. O filme ainda não tinha visto, esse quase fracasso em bilheteria. Que ironia. Um filme de metalinguagem que indica ora crítica, ora exaltação. Como tudo nessa vida, vira uma arma em mãos erradas. Tipo “ Tropa de Elite”, que elevou o neofascismo ao máximo no Brasil, esse filme feito por dois camaradas. Acho curioso como Tyler Durden foi de underground pra terrorista. Se bem que o combo de personificação do primitivismo patriarcal com o sumo do norte-americanismo não resultaria em algo menos do que foi — exceto pela linguagem de Fincher que tira sarro de nossa cara, como um bom diretor faz. “Isto é um filme”, ele dizia a cada instante. Não é uma religião. Uma seita. Um clube. É cinema. Eu entendo que pra quem era só mais um proletário lascado que não dormia e que tinha como única fonte de prazer colecionar móveis, o espancamento era o único sopro de vida que ele conseguia absorver. Pois dessa vez ele escolhia bater e ainda podia revidar. Ou surtava em busca do brio perdido e fazia queimar em sua mão o ácido que lhe presentearia com uma cicatriz. É meio assim com as palavras. Elas me arrebentam a cara e eu usufruo disso. Assim como na luta, a escrita também se faz com os punhos. Se eu olhar muito para um texto até não ver mais seu corpo, e sim os filetes de sangue que se separam dentre os meus dentes, sei que a chegada do delírio também implica em seu ponto final.