Simplicidade

Outra partida de paciência terminada, e as cartas dançam freneticamente na tela do computador, celebrando a vitória. Aos noventa, o tempo corre devagar. Amanhã é dia de feira, com sorte encontrará frutas-do-conde enormes e doces para comer depois do almoço. Também tinha contas a pagar. O joelho incomodava, mesmo assim, fazia a pé o trajeto da casa até o banco, sem nunca resmungar. Gostava de admirar a floração das árvores nas diferentes épocas do ano. Era inverno, tempo das cerejeiras. As que ficavam junto ao rio eram sempre as mais bonitas. Colocou o CD, coletânea de música clássica, no drive da torre do computador. Ficou escutando, tranquilo, às vezes cantarolando __ como gostava de música! A viuvez é que abrira um buraco no seu amor à vida. Sentia falta de tudo. Da comida saborosa, das conversas em voz baixa na cama, um hábito adquirido quando as crianças eram pequenas, para não acordá-las __ e ficou. Da presença ao seu lado no caminho domingueiro até a igreja, braços dados, passos lentos: a comunhão da fé. Sábado à tarde a filha viria. Não podia esquecer de comprar a rosca que ela gostava. Acendeu o abajur e sentou-se à beira da cama para o longo período das preces, não fosse ele se esquecer de alguém, vivo ou morto. Os carros passam na rua sem perturbá-lo. Nem as vozes dos passantes, tampouco. Os ruídos do mundo são uma canção para o sono que nem sempre chega fácil. Vestiu então o pijama, deitou-se, e ao apagar a luz, agradeceu sinceramente à Deus pelo fim de mais um dia.

Ana Deister
Enviado por Ana Deister em 16/05/2024
Código do texto: T8064729
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.