Clube do Contista

 

Cheiro de lágrimas 

 

Thamires já ia fechar o estabelecimento  mas ainda tinha clientes saboreando um pedaço de torta com um café fresco. Todo o ambiente era tomado pelo cheiro dos grãos recém trazidos por seu pai da fazenda . Tudo era fresco e aromático na pequena casa  de bolos .  Mas o diferencial eram os bolos super bem confeitados por ela.

Antes de sair ainda foi dar uma olhada na sala dos fundos onde estava, sobre a mesa, seu bolo de casamento. Imaculadamente branco com muito detalhes florais parecendo uma renda. 

Ela iria para a fazenda no dia seguinte junto com o bolo e sua prima ficaria a cargo de cuidar da loja para ela.  

Fechou a porta e partiu para o açougue  ao lado que era do seu pai.

O cheiro de carne no local   nao saia nem com qualquer limpeza , já estava impregnado.  

Ela era um jovem corpulenta sem muitos atrativos mas com uma voz aveludada e um perfil amável e delicada. Entregou um bolo de aniversário naquela manhã com cheiro de baunilha a pedido do cliente e o cheiro ainda estava em sua cozinha.

Tudo devidamente preparado e arrumado para o dia seguinte.  O tão esperado casamento.

Ainda foi conferir as trufas e os brigadeiros, as tortas de limão  e morango  para o dia seguinte. A prima, que cuidaria de tudo  faria os salgados frescos para os clientes do dia . 

Quando o  último cliente da loja partiu ,Thamires deu os últimos toques de limpeza no pequeno estabelecimento.Lembrou do bolo,  ela mesma fizera com detalhes rendados tornando a delicia e maciez  do recheio num verdadeiro véu de noiva na cobertura. 

Pronto. Partiu para casa que era um sobrado em cima das duas lojas.  

Já dentro de casa foi verificar as janelas do quarto dos pais. Havia um cheiro de alfazema, perfume predileto da mãe, ainda no ar. 

Tranquila, preparou seu chá de morango preparando- se para dormir. Um cheiro inconfundível. 

No seu quarto deixou as janelas entre abertas para que o vento da noite acalentando seu sono. 

Na cama, retirou a colcha de croche que a avó fez meses para compor seu enxoval. Era de linha fina com muitas rosas aplicadas.  Ela e o noivo morariam ali. Antes de apagar a luz deu uma olhada em tudo ao redor para constatar a perfeição do lugar e ficou acariciando as rosas aplicadas na colcha em seu colo . 

Uma vez deitada  passava em sua cabeça os últimos meses vividos. A primeira vez que o noivo experimentava seus doces e ficara impressionado. As voltas ao estabelecimento e as tentativas de conversa.

Thamires não era rica e tinha consciência que sua aparência não era desejável. Somente seus dotes profissionais atraia  aquele homem. 

O primeiro pedido para irem ao cinema e o primeiro beijo com sabor pipoca doce. 

Caiu num sono leve. E pode sentir quando um vulto entrou por sua janela. Estava muito escuro e o medo gelava em suas veias.

Ainda perguntou :, - quem está aí? - sem resposta viu que o vulto aproximava de sua cama . Aterrorizada pegou debaixo de seu travesseiro uma faca de açougue  que seu pai mandava que ela sempre trouxesse consigo para o caso de um assalto. Perguntou novamente - quem é  ? - assustada e sem saber o que fazer, com um grito preso na garganta, sentou-se na cama e quando o vulto de um homem aproximou-se mais perto dela não teve dúvida, atacou ele com a faca diretamente em sua garganta, sentindo o homem cair por sobre o seu corpo. Soltou um gemido empurrando ele de si. Saltou da cama para fugir.  Em sua mente o assaltante entrou na surdina para lhe fazer mal. Atravessou o quarto, ainda com a faca na mão para acender a luz. 

O corpo lhe pareceu conhecido, deitado de bruço numa poça de sangue.  Estava aterrorizada mas ainda conseguiu aproximar-se e virar o corpo. Para dar conta de uns olhos arregalados e uma fisionomia de terror. O sangue ainda escorria pela garganta. Era seu noivo. Ele tinha lhe preparado uma surpresa. Uma primeira noite de amor antes do casamento. Na mente de Thamires não passava coisas como sedução  e amor. E sabia que ele não desejava seu corpo  

As lágrimas vieram  e escorrendo por sua camisola com gotas de sangue. Não podia se controlar mas teria que tomar uma decisão. Ligar para o pai seria o mais prudente. Ela acabou de cometer um assassinato frio e horrível. 

O noivo nunca conversava muito. Ele vinha saborear suas delicias, elogiava, trazia flores. E logo que começaram a sair ele falou em casamento. Era um homem recém chegado na cidade que abriu uma loja de marcenaria. Tinha negócios na capital mas pouco falava disso. Ficou amigo de seu pai. Em pouco tempo conquistou muitos na cidade. Mas de seu passado falava pouco. A família, que pouco sabiam quem eram, não viriam para o casamento. 

Com um passado misterioso, aquele homem foi invadindo a vida de cada um, e o coração de Thamires. 

Ela se recompôs, ainda não era meia noite quando arrastou o corpo para o açougue.  Voltou para casa e tentou se livrar o máximo do que estava sujo de sangue. Limpou o chão.  Os lençóis e a camisola pós nun saco.Virou o colchão.  Pós uma manta grossa sobre a cama e a suave colcha com flores aplicadas por cima. 

Desceu então já com uma ideia na mente. Com a precisão que aprendeu com o pai trabalhando no açougue,  sabendo manejar bem uma faca elétrica, colocou o corpo em cima da mesa de corte, começou seu árduo trabalho. Cortou o corpo em pedaços e entulhou tudo em sacos pretos próprios para despejos de carne. 

Limpou tudo com muito esmero. Não pensava .Só fazia tudo para não deixar vestígios. E era boa nisto. 

Já de madrugada partiu em seu carro com três sacos pretos na mala. Foi até o rio, amarrou pedras nos sacos e os viu afundar nas águas negras e caudalosas.  Perdeu algum tempo ali , vendo as águas voltarem a sua normalidade.

Só assim voltou para casa. E foi trabalhar  em seu bolo de casamento. Havia um cheiro de sangue em suas mãos mas não a limitou a desenhar pequeninas rosas vermelhas sobre a renda branca.

. Já amanhecia quando terminou seu trabalho. 

Os músculos da face pareciam retesados.  Com custo comprimentou o primo que viera busca-la.. Com dificuldade também recebeu beijos e abraços  das pessoas na fazenda.

Ninguém percebeu seu silêncio ao ser maquiada, penteada e vestir-se de noiva, pois era uma moça calada. Quando fechava os olhos lembrava do golpe que proferiu de forma  fatídica  em seu noivo.  

Enquanto passava batom sentiu o toque suave dos únicos beijos singelos que conhecerá na vida. E o perfume de rosas vindo do jardim deixou-a um pouco enjoada. Era uma decoração floral excepcional.  Não escutou quando sua mãe ralhou com ela sobre as rosas vermelhas no bolo. Nada importava mais.

Chegou a hora e todos já comentavam a falta do noivo. Thamires se mantinha quieta dentro do encomodo vestido que pressionava demais seu corpo para aparentar ser mais magra. 

Passou uma hora e seu pai mandou alguém ir a cidade. Sua irmã dizia que ele esteve na loja no dia anterior. Funcionários da marcenaria viram o patrão  fechando a loja e partir com o seu terno na mão. Mas ninguém tinha notícias dele. 

A tarde chegou e algumas pessoas começaram a ir embora. O padre ainda esperava. Thamires sentou no último banco adornado de flores junto às cestas de pétalas que as crianças iam jogar pelo caminho até o altar. E uma lágrima escorreu pela sua face e se alojou em sua boca. Gosto de soro. Nenhum cheiro tinha a lágrima. 

Nada mais era do que o caso de mais um noivo que abanonara a noiva no altar. 

E ninguém nunca mais teve notícias do noivo. 

 

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 16/05/2024
Código do texto: T8064127
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